A linguagem dos direitos humanos existe para nos lembrar de que alguns abusos são realmente intoleráveis e que algumas desculpas para tais abusos são realmente insuportáveis.
Michael Ignatieff
Os direitos humanos: entre a história e a política
Para quem assume uma postura crítica diante do mundo da produção intelectual sobre os direitos humanos, dois aspectos específicos devem chamar a atenção: a enorme dimensão quantitativa e o caráter predominantemente pacífico de sua evolução conceitual.
Enquanto a primeira característica pode ser explicada pelo aumento constante das violações aos direitos dos indivíduos por parte dos Estados, a segunda parece se referir à gênese mesma do conceito de direitos humanos. Nascidos como resposta política, contingente e concreta a um acontecimento monstruoso, impensável a priori, tal como o Holocausto, seu desenvolvimento teórico esteve marcado por um extraordinário consenso universal baseado no repúdio mundial ao plano insano de aniquilação em massa de um povo. O enorme consenso político promoveu amplo consenso teórico e este último, objetivamente, o empobrecimento intelectual de seu desenvolvimento. O debate posterior acerca do fundamento dos direitos humanos orientou-se, inicialmente, com muita força para um plano filosófico-metafísico que permitisse afirmar sua existência e sua legitimidade, independentemente não só do reconhecimento dos governos, mas também da própria sociedade.1 Nesse contexto, a concepção dos direitos humanos como inerente à condição humana, embora tenha permitido, por um lado, neutralizar as tendências negativas provenientes de posições ligadas a um conceito exacerbado da soberania, por outro lado agiu prejudicialmente, considerando herética qualquer postura que reconduzisse a origem e a existência dos direitos humanos à história e à política. A forte hegemonia do humanismo em suas diversas versões apoiou essa perspectiva de fundamentação metafísica dos direitos humanos. Paradoxalmente, foi a associação plena do pensamento humanista com a idéia de progresso e a crise profunda de tal idéia2 que permitiu a abertura de uma brecha antifundacional no pensamento dominante sobre os direitos humanos.
Não há dúvidas de que a concepção dos direitos humanos como direitos inerentes à pessoa humana tenha contribuído, decisivamente, para uma visão idolátrica3 e anistórica de direitos que, de forma evidente, são históricos e contingentes. Contraposta à visão metafísica de Carlos Nino, Eduardo Rabossi rejeita a idéia de qualquer fundamentação que pretenda transcender a normativa que, em matéria de proteção internacional de direitos humanos, vem se desenvolvendo desde a Segunda Guerra Mundial até nossos dias.4 Essas idéias foram retomadas com muita força pelo filósofo americano Richard Rorty (pp. 120-1), em uma palestra da qual me parece pertinente citar um parágrafo realmente significativo:
Meu argumento básico é que o mundo mudou e que o fenômeno dos direitos humanos torna irrelevante e anacrônico o fundacionalismo em matéria de direitos humanos. A tese de Rabossi, segundo a qual o fundacionalismo dos direitos humanos é anacrônico, parece-me, ao mesmo tempo, verdadeira e importante, e será, portanto, o tema central desta palestra. Ampliarei e defenderei a idéia de Rabossi de que não vale a pena questionar se os seres humanos realmente têm seus direitos listados na Declaração de Helsinque. Em particular, defenderei que nada relevante para a decisão moral separa os seres humanos dos animais, exceto fatos históricos, continentes e naturais.
A idéia central que quero defender aqui se refere ao fato de estar convencido de que o desenvolvimento de uma agenda vigorosa e confiável em matéria de direitos humanos, que para sua efetiva vigência recupere a capacidade de mobilização social, depende em boa parte de recuperar seu sentido político original, presente em sua origem histórica. Essa perspectiva parece-me especialmente pertinente para a realidade concreta daquilo que, sem ignorar os aspectos problemáticos dessa definição, pode ser entendido como o Sul político-geográfico de nossa aldeia global. Nesse Sul, não só de um ponto de vista factual, mas também de um outro, que pode ser entendido como cultural, o caráter absolutamente intolerável da violação aos direitos civis e políticos está muito longe de constituir um debate politicamente fechado. As discussões em torno do binômio garantias/eficiência policial nos assuntos relativos à segurança do cidadão são os melhores exemplos, embora, obviamente, não sejam os únicos. É claro que os caminhos da legitimidade dos direitos humanos, condição imprescindível para sua vigência efetiva, remetem à metafísica ou à política. A história e a experiência estão aí para nos lembrar da solidez apenas aparente de qualquer legitimidade metafísica. Ao contrário, e paradoxalmente, parece existir muito mais força na fragilidade da legitimidade política. Vejamos algumas das razões para isso.
Se a Declaração Universal dos Direitos Humanos afirma que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”, é justamente porque os homens não são iguais por natureza, pois, se assim fosse, o conteúdo dessa declaração seria, no mínimo, supérfluo. Nesse sentido, parece-me bastante ilustrativo o conteúdo das seguintes citações:
A esfera pública, sempre inseparável dos conceitos de liberdade e de distinção, caracteriza-se pela igualdade: por natureza os homens não são iguais, precisam de uma instituição política para chegar a ser iguais, ou seja, das leis. Só o ato político pode gerar igualdade [grifo meu]. (Fina Birules, p. 22)
A Declaração [Universal dos Direitos Humanos] conserva um eco de tudo isso porque os homens, de fato, não nascem livres nem iguais […] a liberdade e a igualdade dos homens não são um dado de fato, porém um ideal que deve ser perseguido; não uma existência, porém um valor; não um ser, mas um dever […]. (Norberto Bobbio, p. 134)
Essa perspectiva abre as portas para uma fundamentação positiva e não-transcendente dos direitos humanos como instrumento político da igualdade. Perspectiva que, por outro lado, permitiria superar os impasses a que o prolongado debate antes mencionado tem levado a agenda internacional dos direitos humanos. Parece-me que ninguém a formulou melhor que Michael Ignatieff (p. 83), quando afirma: “[Os] direitos humanos são a linguagem mediante a qual os indivíduos criaram uma defesa de sua autonomia contra a opressão da religião, do Estado, da família e do grupo”.
O problema da relação entre direitos civis e políticos
e direitos econômicos e sociais
A situação de guerra fria que se seguiu à Segunda Guerra Mundial condicionou de forma direta o debate político e acadêmico. Dois focos de tensão centrais surgiram a partir desse momento: (a) o debate a respeito da preeminência dos direitos civis e políticos ou dos direitos econômicos e sociais – que pôs em confronto os países ocidentais industrializados e os países do bloco socialista; (b) o debate sobre o caráter universal dos direitos humanos, que pôs em confronto, de modo geral, os países desenvolvidos e boa parte do mundo árabe e dos países asiáticos. Curiosamente, se o segundo debate permanece aberto, em grande medida pelo impulso permanente que as diversas variantes do relativismo cultural e do imperialismo moral lhe deram, o primeiro foi encerrado antes que se esgotasse. A abrupta e patética queda do bloco socialista em 1989 deixou a descoberto o caráter superficial e grosseiramente demagógico do “debate” sobre os direitos humanos que acompanhou todo o período da guerra fria. O interessante é que, com o triunfo do “Ocidente”, venceu, de alguma forma, a posição do bloco socialista. O tão mencionado e tão superficial e pouco analisado caráter “indivisível” e “interdependente” dos direitos humanos funcionou, de fato, conforme tentarei demonstrar, como um elemento relativizador da prioridade dos direitos políticos. Segundo nos lembra Bobbio (pp. 150 e ss.), nunca é demais insistir no fato de que os direitos humanos não são absolutos, nem constituem uma categoria homogênea (contrariamente ao que pareceria indicar seu suposto caráter indivisível). O valor absoluto de alguns poucos direitos, ou seja, seu statusprivilegiado, provém do fato de sua violação ser condenada universalmente. Mesmo assim, por exemplo, o direito a não ser submetido à escravidão implica a eliminação do direito de possuir escravos e o direito de não ser torturado implica a eliminação do direito de torturar. Nesse contexto, cabe perguntar, além da retórica e da ironia, qual é o conteúdo ou o significado do conceito de indivisibilidade.
Essa superficialidade no tratamento do assunto revelou que a preem