AO ataque ao World Trade Center em Nova York, em 2001, foi um ato horrível, um evento atroz, de proporções sem precedentes. Representou um golpe devastador para o povo americano, que, literalmente, há muitas gerações, jamais sofrera uma grave agressão de agentes estrangeiros dentro de seu próprio país. Isso tudo é indiscutível. A questão aqui é que as autoridades públicas dos Estados Unidos, tanto no âmbito local quanto no nacional, se aproveitaram da indignação e do medo causados pelos atentados para tentar assumir o controle do povo, e até mesmo da política do país. Tratam as críticas, como esta que faço aqui, como atos de deslealdade. Três meses após os ataques, o secretário da Justiça dos Estados Unidos declarou: “Aos que amedrontam o povo amante da paz com o fantasma da liberdade perdida, minha mensagem é a seguinte: essa tática só ajuda aos terroristas, pois corrói a unidade nacional e enfraquece nossa determinação. Ela fornece munição aos inimigos da América e incertezas a seus amigos”.1
Apesar das muitas ações empreendidas contra terroristas, e contra estrangeiros em geral, desde o 11 de setembro, acho que o objetivo de controlar o povo americano e criar uma agenda doméstica repressiva está bem configurado. Isso vem sendo levado a cabo com o cerceamento da privacidade e, de modo mais geral, dos direitos dos suspeitos, mediante a discriminação maciça contra estrangeiros de origem árabe e muçulmana, ações legais repressoras e intervenções na garantia do habeas corpus. Por outro lado, não quero exagerar: felizmente, o alcance da repressão tem sido limitado, graças a uma certa resistência popular, nos tribunais e até mesmo dentro da própria administração pública.
Também está claro que muitas das ferramentas de repressão são anteriores ao 11 de setembro, e já existiam mesmo antes de a presente administração assumir o poder. As ferramentas foram forjadas com base em leis contra o terrorismo promulgadas durante a administração Clinton, também pela já antiga legislação de imigração, que sempre foi potencialmente repressiva, e ainda por leis relativas ao serviço de informações sobre estrangeiros. É verdade que o governo federal adotou novas leis, como o USA Patriot Act, sobre o qual vocês já devem ter ouvido falar, e sobre o qual falarei mais adiante; mas leis como essa trazem apenas mudanças adicionais. Os governos locais e o nacional vêm se aproveitando principalmente do potencial repressivo da legislação já existente; organizações não-governamentais como a American Civil Liberties Union, há anos vêm nos advertindo sobre os perigos de tais leis.
No Brasil, tal como em muitas outras nações, a maioria da população não lida com problemas desse tipo, nem é diretamente afetada por eles. São notícias estrangeiras, talvez interessantes, mas algo remotas. Assim, na medida do possível, tentarei relacionar os problemas com experiências latino-americanas. As atitudes atuais do governo norte-americano não são comparáveis à repressão, legal e extralegal, existente no Cone Sul de vinte anos atrás. Mas algumas delas são aflitivamente familiares para muitos. Entre elas, a detenção de centenas de pessoas por longos períodos, sem conhecimento da opinião pública, ou a tática de afastar os suspeitos dos processos criminais e mantê-los sob custódia militar, em nome da segurança, impedindo que sejam soltos mediante habeas corpus e sujeitando-os a interrogatórios intermináveis.
Também pode parecer-lhes familiar a reação de alguns tribunais. Em vários casos, os juízes rejeitam as medidas repressivas tomadas pelo governo; no geral, porém, se empenham em aprovar tais ações, sempre que possível, mesmo que no íntimo não concordem com elas. Os juízes hesitam em interferir nos atos do executivo, pois temem ser desobedecidos. Não vêem vantagem em enfraquecer sua legitimidade, expedindo mandados que serão desafiados em nome da guerra contra o terror.
Em alguns casos, as ações do governo americano entraram em conflito com a lei humanitária internacional ou com os direitos humanos. Essas medidas jamais são mencionadas pelo governo e raramente por qualquer outra pessoa no país, exceto por especialistas em direito internacional.
Invasão de privacidade
A grande onda de protestos do público contra as intrusões do governo em sua privacidade ocorreram no final da década de 1960 e no início da seguinte. Naquela época, quando o governo reivindicava o poder de efetuar escutas telefônicas de grupos radicais do país, a Suprema Corte sustentou que, para tais medidas, a autoridade pública estava constitucionalmente obrigada a obter uma autorização judicial, fundamentada na demonstração da probabilidade de que um crime fora ou poderia vir a ser cometido.2 Entretanto, na época, estava claro que a coleta de informações sobre estrangeiros, que não seria usada em um processo penal interno, poderia ser efetuada com menos restrições, pois a Constituição não se aplica a estrangeiros que não se encontram no país. Um tribunal especial foi estabelecido para expedir mandatos para a obtenção de informações no exterior, com base em um nível de exigências bem mais baixo, bastando, muitas vezes, uma simples solicitação governamental. Milhares dessas ordens judiciais têm sido concedidas ao longo dos anos. Mais ou menos na mesma época, na década de 1970, foram criadas restrições à espionagem realizada pela polícia contra grupos políticos nos Estados Unidos. Um famoso relatório do Senado descreveu os abusos de agentes federais que incitavam ao crime, promoviam a dissensão em grupos políticos e disseminavam informações danosas fora desses grupos.3 Práticas semelhantes foram encontradas nos departamentos de polícia estaduais e federais, inclusive em Nova York. Após vários processos judiciais, firmou-se uma espécie de “trégua” negociada, reconhecendo que, como regra geral, não seria permitido à polícia praticar espionagem apenas por razões políticas, mas unicamente com base em informações que apontassem para a possibilidade de práticas criminosas. Os governos federal e local se aproveitaram do temor do público depois do 11 de setembro para permitir um grau maior de invasão da privacidade, quer por meios eletrônicos, quer recorrendo a informantes e infiltração, não apenas na esfera da inteligência internacional, mas, igualmente, em casos criminais e contra os ativistas políticos nacionais. Atualmente, admite-se que o governo use ordens judiciais do United States Foreign Intelligence Court (tribunal de recursos da inteligência internacional) em crimes domésticos. Um dos artigos do USA Patriot Act, sancionado logo após o 11 de setembro, estipula que esse tribunal pode autorizar escutas telefônicas, tanto em investigações domésticas quanto nas estrangeiras. Esse dispositivo era quase invisível no texto da lei, pois foi preciso alterar apenas duas palavras da legislação anterior, que permitia a escuta telefônica para fins do serviço de inteligência internacional.4 O Foreign Intelligence Court também pode ser utilizado para fins mais gerais de espionagem política. O USA Patriot Act permite ao tribunal conceder ordens judiciais para a produção de documentos relacionados a uma investigação. Essa medida aparentemente inocente pode ser usada, por exemplo, para solicitar que as bibliotecas revelem quais livros foram retirados pelos leitores, sem poder informar aos leitores que eles estão sob investigação. Após uma tempestade de críticas, em setembro deste ano [2003], o secretário de Justiça, John Ashcroft, anunciou que o Departamento de Justiça jamais havia “usado” essa lei para forçar qualquer biblioteca a entregar seus registros, afirmando opor-se a “distorções e informações errôneas” relacionadas a ela.5 Talvez ao pé da letra seja verdade que o governo jamais foi ao tribunal a fim de conseguir uma ordem judicial para forçar qualquer biblioteca a revelar informações, mas um levantamento prévio revelou que o FBI obteve informações a respeito de centenas de leitores.6 Se há uma lei permitindo que as autoridades consigam essa informação por coerção, parece pouco provável que um bibliotecário recuse uma solicitação “voluntária”. Preciso acrescentar que os bibliotecários estão atemorizados e confusos? Ao mesmo tempo, o governo vem mudando os padrões de vigilância e infiltração política da polícia, tentando anular as mudanças feitas na década de 1970. O secretário da Justiça alterou as diretrizes do FBI para a abertura de investigações sobre grupos internos, exigindo apenas uma “indicação razoável” de atividade criminosa, ou até menos, no caso de um inquérito preliminar.
Os esforços para enfraquecer a proteção contra a espionagem política chegaram ao âmbito local em várias cidades, sendo Nova York o caso mais recente. Na década de 1970, foi movido um processo contra a polícia da cidade, alegando que ocorrera abuso de poder, por motivos políticos; este foi um dos inúmeros casos que levaram à “trégua” descrita acima.7 O caso foi resolvido na década seguinte. A polícia admitiu não investigar qualquer grupo político ou religioso, a menos que tivesse dados a respeito do envolvimento desse grupo com o crime; tais investigações deveriam ser aprovadas por uma comissão constituída de dois oficiais de polícia e uma pessoa de fora. Ela também concordou em limitar a divulgação de relatórios sobre a atividade política. E – muito importante – o tribunal federal se predispôs a fazer cumprir o acordo, o que chamamos em nossa legislação de “decreto de consenso” (consent decree). A ordem judicial vigorou durante dezessete anos e, aparentemen-te, funcionou bastante bem.
Depois de todos esses anos, no segundo semestre de 2002, a polícia voltou ao tribunal federal para desfazer o acordo, alegando que, diante da ameaça do terrorismo, não poderia mais condicionar as investigações à necessidade de uma informação específica que apontasse para um crime, ou restringir a divulgação de dados. Os advogados da parte contrária, entre os quais me incluo, lutaram contra isso, mas o tribunal aprovou diretrizes para investigações similares às do FBI e depois saiu de cena, sem nem mesmo incorporar as diretrizes à sua decisão. Então ocorreu um escândalo, pequeno, mas significativo. A polícia de Nova York começou a prender pessoas em manifestações contra a guerra, e a intimidá-las com perguntas sobre suas afiliações políticas. Nada a ver com terrorismo, nada a ver com influência estrangeira – eram apenas cidadãos que se opunham à atual política externa. Manifestantes pacíficos em Nova York eram pegos de surpresa e intimidados; muitos quiseram dar queixa à justiça. Agora estávamos de volta ao tribunal, e o juiz, irritado com as táticas policiais, incorporou as novas diretrizes para investigações em sua decisão, dando-lhes força de ordem judicial.
Todas essas alterações na proteção da privacidade são significativas – fraco nível de exigência na obtenção de mandado judicial para realizar escuta telefônica em casos criminais e obter informações em bibliotecas e outras instituições, e enfraquecimento da proteção contra espionagem. Porém, o mais importante nisso tudo, o ponto que desejo enfatizar, é que as alterações não foram dirigidas principalmente contra o terrorismo estrangeiro. Os mandados do Foreign Intelligence Court podem agora ser empregados em assuntos domésticos. As alterações das diretrizes do FBI a que me referi não servem para investigar o terrorismo estrangeiro. O FBI tem um conjunto de diretrizes especiais para tais investigações, secretas há anos, e eu não faço a mínima idéia de seus dispositivos. As diretrizes que foram alteradas são as que tratam da criminalidade interna e de outros assuntos. No momento em que escrevo, o New York Times noticia que os novos poderes foram amplamente usados em assuntos criminais domésticos.8 E a história que relatei sobre as mudanças em Nova York é um exemplo de como as alterações são feitas com o objetivo de atingir o povo – o povo americano que não concorda com o governo.
Processos criminais posteriores a 11 de setembro
São poucos os processos instaurados por crimes posteriores aos eventos de setembro de 2001 – em parte, na realidade, por terem decorrido apenas dois anos desde aquela data. Além do mais, embora tenham envolvido centenas de pessoas, as detenções feitas pelo governo revelaram pouquíssimos crimes graves. E foi porque o governo não teve muitos casos de peso para levar a julgamento, por mais que quisesse encontrá-los, que ocorreu o incidente que relato a seguir. Ou, pelo menos, é o que me parece.