· Revista Conectas – Assuntos

0
Rate this post

O IV Colóquio Internacional de Direitos Humanos teve por tema a análise do paradigma dos direitos humanos como conceito legal e a importância de seu papel no cumprimento da Declaração e dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM).1  Ocorreu no momento em que se aproximava a fase de avaliação intermediária desses Objetivos. Conforme os organizadores do colóquio observaram, o documento sobre os ODM faz apenas ligeiras referências aos direitos humanos e ao Estado de Direito, mas não contém mecanismos que garantam justiciabilidade aos cidadãos e não adota, de forma geral, uma linguagem jurídica. Ao contrário, é elaborado como um “pacto entre nações”, um documento de estrutura ampla que utiliza indicadores econômicos e demográficos como medidas de progresso; um exercício numérico baseado em necessidades, por assim dizer; e uma lista de intenções sobre o que precisa ser feito. A premissa é que essa é com certeza a função dos governos responsáveis pelo bem-estar de seus cidadãos.

Entretanto, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), em sua visão geral dos Objetivos, considera a responsabilidade conjunta das nações, dos cidadãos e da comunidade internacional para sua implementação. Promove atribuições para os movimentos sociais e a sociedade civil mobilizada pressionarem os governos a agir, embora pouco ofereça em termos de mecanismos para tanto.2 

A prática tem demonstrado com freqüência que a pressão da sociedade civil e as enérgicas reivindicações de direitos podem certamente ser bem-sucedidas, apesar da relutância dos governos. Afinal, o próprio regime de direitos humanos deve muito de seu desenvolvimento e de seu crescimento às organizações não-governamentais. Também nessa arena, os ativistas de direitos humanos, os advogados e as organizações não-governamentais têm um importante papel a desempenhar nos esforços para alavancar os ODM, mas é um papel pelo qual precisam lutar por si mesmos, e que requer uma visão mais ampla, para levá-los além dos estreitos limites dos padrões de ativismo estabelecidos. Devem testar sua criatividade e reavaliar algumas de suas estratégias, inclusive as de litígio, tornando-as mais pertinentes à tarefa específica, além de buscar novas estratégias mais apropriadas e eficazes. Os Objetivos oferecem oportunidade e também um conjunto de objetivos de certa forma concretos, que podem desafiar o ativismo em direitos humanos para que ingresse em novas áreas de atuação.

Caracterizando os hiatos

A existência de uma controvérsia, ou de um perceptível desligamento entre a linguagem de direitos humanos e a dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, é sintoma de uma diferença maior entre as abordagens baseadas em direitos e aquelas baseadas em necessidades de desenvolvimento. Apesar do compromisso de universalidade e indivisibilidade dos direitos humanos, originalmente apresentado de modo formal na Declaração de Viena e no Programa de Ação de 1993,3  poucas organizações de direitos humanos articularam de fato estratégias eficazes para a defesa e a promoção de direitos econômicos, sociais e culturais, além de apresentar relatórios alternativos à Comissão de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Existem, obviamente, exceções notáveis de iniciativas bem-sucedidas em matéria de prática jurídica; estratégias e tentativas de desenvolver ações jurídicas envolvendo direitos econômicos, sociais e culturais vêm crescendo aos poucos.4  De fato, vários programas interessantes têm sido articulados em diferentes regiões do mundo, em especial nas Filipinas, na Nigéria, em Bangladesh e em diversos países da América Latina.5  No conjunto, entretanto, o compromisso com a indivisibilidade de direitos permanece mais no campo verbal. Firmemente dedicados a estratégias de demandas judiciais diretas no trabalho com direitos civis e políticos, os advogados de direitos humanos têm apresentado maior dificuldade em lidar com os padrões menos rígidos e, talvez, menos claros, dos direitos expressos no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC).

Certamente é injusto caracterizar a divisão entre as abordagens pelos direitos e pelo desenvolvimento como uma falta de interesse, ou uma visão estreita por parte dos advogados. Da mesma forma que os direitos são interdependentes e indivisíveis, assim também são os gigantescos problemas do mundo em desenvolvimento, que se encontram tão interconectados a ponto de ficarmos desnorteados, sem saber por onde começar. Os problemas de desenvolvimento deficiente resultariam simplesmente de falhas na liderança, de corrupção e falta de acesso político para os cidadãos isolados do contexto global? A democratização na esfera nacional traria soluções, ou a democratização na esfera internacional traria uma distribuição mais eqüitativa da riqueza global? Seria o sistema econômico mundial tão injusto e iníquo que manteria o Sul em um patamar inferior, ou isso decorreria apenas da má utilização nacional dos recursos disponíveis em cada país e do predomínio de conflitos armados? Os direitos civis e políticos trarão desenvolvimento sustentável, ou a democratização resultará de melhores condições econômicas e da garantia de direitos econômicos, sociais e culturais? O que vem primeiro: a galinha ou o ovo?

Um exemplo é minha região, no Oriente Médio e na África Setentrional, onde a maioria dos países padece com regimes autoritários e uma quase total negação dos direitos políticos e econômicos dos cidadãos, devido à falta de participação democrática nos processos de decisão em políticas que afetam nosso cotidiano. Regimes autoritários também indicam uma relativa fraqueza dos sistemas jurídicos e falta de independência do Judiciário, resultando principalmente em um “direito do Estado” em vez de um “Estado de Direito”. Adicionando-se um pouco de corrupção em vários níveis, torna-se dificílimo para o Estado e suas instituições lidarem de modo eficaz com os problemas da pobreza, ainda que o queiram. Esse fato tem levado a maioria dos ativistas a priorizar os direitos civis e políticos em detrimento dos direitos econômicos, sociais e culturais, na crença de que sem democracia e respeito aos direitos políticos humanos – amplamente definidos – nenhum dos outros direitos pode ser alcançado. Dessa forma, assistimos nos últimos tempos a uma proliferação de apelos por reformas políticas, econômicas, jurídicas e outras, por maior participação dos cidadãos comuns na tomada de decisões e na elaboração de políticas e, em menor grau, por descentralização. Em nossa região, muitos desses apelos por reformas são efetuados pela elite política local, incluindo as organizações de direitos humanos – e na maioria das vezes permanecem circunscritos a elas. Repetem a mesma lógica do statu quo ao supor que, uma vez ocorrida a mudança no topo, tudo o mais virá em seu devido tempo.

A busca de estratégias criativas

Então, como prosseguir na elaboração de estratégias de direitos humanos que possam ser relevantes para os Objetivos do Milênio? Seriam nossos métodos usuais – documentação e relatórios, denúncia pública, assistência judicial e litígio em casos individuais – relevantes e eficazes nessas circunstâncias? Deveríamos tentar desenvolver novos enfoques, mais condizentes com a abordagem baseada em necessidades dos ODM e acrescentar além disso uma visão fundamentada em direitos? A seguir, apresentamos algumas reflexões sobre oportunidades que podem estar disponíveis para advogados e ativistas de direitos humanos. Cada uma delas, claro, exigiria maiores reflexões e planos estratégicos antes de se tornar viável.

Litígio de interesse público

Os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio não são compromissos legais nem individualizados e não possuem mecanismos para sua implementação, salvo uma exigência sucintamente explicitada para que a Assembléia Geral avalie o andamento e para que o Secretário-Geral da ONU “divulgue relatórios periódicos a serem considerados pela Assembléia Geral, que sirvam de base para futuras ações”.6  Esses relatórios são de natureza abrangente, atuando mais como apelos e estímulos à comunidade internacional do que como um conjunto de direitos. No entanto, talvez seja possível, e mesmo vantajoso, recorrer ao litígio de interesse público para que avance a implementação dos Objetivos do Milênio.

Esse tipo de litígio em geral aparece sob a forma de ações coletivas e ações contra o Estado e seus organismos, ou contra cidadãos e empresas, “em favor do interesse público”. Entretanto, nem todos os países contam com o dispositivo legal de ações coletivas, e a lei de interesse público em geral não é individualizada, ou seja, baseada em reivindicações de uma pessoa específica contra o Estado – embora processos judiciais individualizados possam ser utilizados para estabelecer precedentes e com isso contestar ou confirmar determinados princípios ou exigências de interesse público. Ações judiciais de interesse púb