· Revista Conectas – Assuntos

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Introdução

O envolvimento da sociedade civil na elaboração de políticas sociais tem aparecido como um dos motes dominantes da Agenda para uma Nova Política. Existem de fato diversas situações nas quais o cidadão comum pode ser incluído nas políticas sociais, como por exemplo: elaboração de diretrizes, alocação de recursos, assessoria a órgãos públicos, prestação de serviços de base, acompanhamento da implementação e da prestação de contas aos órgãos públicos. As pessoas podem ser convocadas, sozinhas ou em grupos, para atuar como peritos, clientes e usuários dos serviços, integrando o tecido social. Às vezes, a participação da sociedade civil não passa de uma fachada, e os formuladores das políticas seguem seus caminhos usuais, sem empecilhos. Observa-se, no entanto, que em alguns setores das políticas públicas, ou em determinadas regiões da América Latina, têm sido envidados esforços para fazer com que a participação se torne significativa, como instrumento para dar poder ao cidadão e aprimorar os serviços públicos. Na medida em que os cidadãos puderem exercer uma influência tangível sobre a elaboração das políticas e dispuserem de recursos e de estabilidade institucional para resistir à cooptação e manter sua autonomia, esse engajamento resulta no que, para os propósitos deste artigo, denominaremos parceria entre o Estado e a sociedade civil.1  

Nos últimos anos, os reformadores do direito penal têm procurado estender aos institutos da justiça penal os princípios de participação da sociedade civil já consolidados em outros campos das políticas públicas. Essa tendência reflete, em grande parte, a evolução da comunidade dos direitos humanos, que passa de protestos reativos e ad hoc contra a violência institucional para uma atitude proativa, destinada a analisar e reestruturar o sistema. Este artigo examina os frutos de tais esforços na área de policiamento e segurança do cidadão e também na de política penal (prisões e condenações). Constata que, embora em certas áreas sejam observados marcantes progressos e inovações, em outras há poucos avanços e algumas resistências institucionais entrincheiradas. Estabelece uma distinção entre dois modos principais de comprometimento da sociedade civil: (1) fiscalização e supervisão; e (2) engajamento construtivo e parceria. É inevitável que o primeiro deles gere certo antagonismo, pois a comunidade assume um papel fiscalizador e as autoridades em geral reagem com sigilo e hostilidade. O segundo modo é mais criativo, mas depende de a sociedade civil se mobilizar nas áreas da ordem pública e da justiça e também requer que a administração pública ceda uma parcela de seu poder e de suas prerrogativas, proporcionando a infra-estrutura institucional necessária para tal interface.

A sociedade civil e o Estado no Brasil

Este artigo focaliza o caso do Brasil e, especificamente, as políticas públicas que dizem respeito à criminalidade e à justiça. Por um lado, sabe-se que a sociedade civil brasileira é relativamente densa (ainda que se distribua de forma irregular), em função dos muitos instrumentos institucionais destinados a favorecer a participação que se tornaram disponíveis desde a transição democrática. A Constituição Federal de 1988 teve um papel central nesse assunto: o processo de sua elaboração foi um dos mais participativos em toda a América Latina, com 122 emendas de base apresentadas por movimentos sociais, totalizando mais de 12 milhões de assinaturas, muitas das quais efetivamente levaram a alterações consignadas no texto final.2  A nova Constituição institucionalizou, em especial, várias formas de contribuição popular para a governança e para a elaboração de políticas públicas: plebiscitos e referendos, audiências públicas, tribunais populares e – o que é mais pertinente para nossa discussão aqui – a criação de uma pletora de conselhos mistos reunindo Estado e sociedade civil, nos três níveis de governo, para atuar como instâncias consultivas em diversas áreas de política social (Draibe, 1998; Tatagiba, 2002).3  

Tais mecanismos podem ser classificados, de forma simplificada, em três grupos: (1) conselhos gestores, de natureza permanente, encarregados de fiscalizar a aplicação de determinadas políticas sociais (saúde, educação, serviços sociais, bem-estar da infância e da juventude), com poderes definidos em lei para fixar prioridades, elaborar orçamentos e fiscalizar a implementação de políticas; (2) conselhos ad hoc, estabelecidos para tratar de políticas governamentais específicas (por exemplo, merenda escolar, emprego, habitação, distribuição de alimentos e desenvolvimento rural); e (3) conselhos temáticos, que lidam com questões tais como raça, necessidades especiais ou direitos da mulher. Estes últimos não têm previsão legal específica e podem ser criados por iniciativa local.

Todos esses conselhos ocupam um espaço institucional que está consignado na legislação com alguma discricionariedade – federal, estadual ou municipal – e se caracteriza como de “participação a convite” (Cornwall, 2002). Tal circunstância lhes assegura certo nível de recursos e de continuidade, embora o clientelismo político e a cooptação constituam uma ameaça constante. Nos três grupos, a tendência é a uma composição mista: em geral, metade dos membros se constitui de representantes da sociedade civil e a outra metade pertence à entidade governamental envolvida. É indiscutível que o modelo de relações entre Estado e sociedade civil baseado em “conselhos” tem aprofundado o nível de associação cívica no Brasil: estima-se que, em 1999, apenas os conselhos gestores de saúde contavam cerca de 45 mil membros em todo o país (Tatagiba, p. 48).

O Partido dos Trabalhadores (PT) tem sido um agente particularmente importante na promoção e na consolidação desses espaços institucionais, com iniciativas pioneiras nas administrações municipais e estaduais no sentido de abrir o processo político a formas de participação social, como o famoso Orçamento Participativo.4  Esses espaços e processos de participação têm o potencial de ampliar a capacidade de a sociedade civil e o Estado operarem em suas respectivas esferas específicas, além de reuni-los de forma solidária em direção à efetiva solução dos problemas sociais. O partido tem utilizado o modelo do conselho consultivo tal como já existe, mas também busca modificá-lo em diversas áreas de definição de políticas públicas, para torná-lo menos exposto à cooptação e mais sensível às opiniões e às necessidades da sociedade civil, organizada ou não.5 

A sociedade civil e o sistema jurídico penal

Toda burocracia tende a ser insular e auto-alimentadora, mas seu grau de resistência à influência externa varia, e nem todas as áreas de políticas públicas estão igualmente abertas ao engajamento da sociedade civil. Por tradição, o sistema jurídico penal tem sido o mais fechado, pois é formado por instituições que integram (pelo menos em teoria) o monopólio estatal do poder coercitivo. Os profissionais que atuam no sistema jurídico penal tendem a desenvolver um acentuado espírito corporativo, com base em sua própria formação e nas responsabilidades de controle social que exercem. Por conseguinte, costumam ser muitíssimo resistentes a qualquer interferência externa, ou a qualquer investigação sobre suas instituições.6  

No Brasil, as associações profissionais de magistrados, promotores e delegados de polícia mostraram sua força coletiva de vários modos – a polícia conseguiu bloquear reformas constitucionais há muito almejadas7  e os magistrados resistiram a medidas que consideraram como um cerceamento de sua autonomia.8  Em meados dos anos 90, pesquisas levadas a cabo entre magistrados e promotores mostraram que 86,5% dos juízes recusavam frontalmente qualquer forma de controle externo sobre o Judiciário; os promotores apresentavam uma postura um pouco mais democrática, com apenas 35% manifestando total oposição à fiscalização externa de suas próprias instituições. Ainda assim, consideravam que uma instância desse tipo deveria ser fundamentalmente composta de membros escolhidos entre seus pares (Sadek, 1995; 1997). No entanto, uma série de escândalos que atingiu o próprio Judiciário logo em seguida minou essa posição, e os magistrados passaram a aceitar, com reticências, a necessidade de um conselho supervisor misto, com representantes do Judiciário e da sociedade civil, para recuperar a legitimidade perdida. Essa medida foi por fim aprovada em dezembro de 2004, em uma reforma aguardada havia tempo. Pesquisa similar realizada com delegados da polícia civil revelou que qualquer tipo de inspeção de suas atividades era sistematicamente classificada como de baixa prioridade em termos de contribuição para uma melhoria no policiamento, embora a criação de conselhos de polícia comunitária tenha sido um pouco mais bem recebida (Sadek, 2003).

É evidente que esses problemas de apropriação institucional e de mentalidade corporativa não constituem exclusividade brasileira. Resultam, na verdade, da maneira de o Estado moderno lidar com o conflito social, o crime e a marginalidade. Como vários especialistas em direito penal já apontaram, no modelo retributivo de justiça o crime é percebido como uma violação ao Estado. Assim, o sistema judiciário define a culpa e aplica penas em uma disputa entre o infrator e o Estado, sendo que a vítima, ou a comunidade mais ampla, se mantém ausente ou silenciosa (Zehr, 1990). Os conflitos tornaram-se “propriedade” do Estado (Christie, 1977), uma lógica sobre a qual os agentes estatais erguem seu edifício de competência profissional. Tal competência é empregada tanto contra os colegas do sistema judiciário quanto contra os leigos, como forma de defenderem seu monopólio sobre diferentes aspectos das instituições legais e da ordem pública.

As instituições do sistema judiciário brasileiro caracterizam-se pela atomização e pela hiperautonomia, tanto no nível institucional quanto na esfera do operador individual, com rivalidades e concorrência entre os diferentes institutos do sistema penal – polícia civil e militar, Ministério Público, tribunais e prisões – bem como entre os diversos setores oficiais responsáveis por eles. Assim, por exemplo, a polícia civil no Brasil não constitui uma mera força investigativa, como em outros países, exercendo uma função quase judicial. A investigação policial espelha aquela conduzida pelos tribunais, convertendo o delegado de polícia – obrigatoriamente graduado em direito – em um juiz de instrução de facto, e a delegacia em uma “vara”, conduzida por um “escrivão”. Essa “advogadização” da polícia (Cerqueira, 1998) coloca-a em situação de concorrência com o Judiciário e com o Ministério Público no controle da investigação criminal. É esse contexto que define o grau e o tipo de atuação da sociedade civil sobre o Judiciário.

Para os grupos da sociedade civil, tais circunstâncias tornam muito difícil redefinir os termos do debate sobre lei e ordem. Neild (1999) mostra que a terminologia empregada é fundamental para moldar as idéias de “segurança” e de relacionamento entre o Estado e o cidadão. O conceito de “segurança nacional” estabelece a noção de force majeure e de fato confere ampla margem de liberdade para que as forças de segurança persigam, por todos os meios necessários, alguma noção de interesse nacional. O caráter militarizado da principal força policial brasileira, instituída, em sua forma atual, durante o regime autoritário de 1964 a 1985, continua a espelhar a lógica da segurança nacional predominante naquele período.

Nos dias de hoje, fala-se muito em “segurança pública” na América Latina e no Brasil. Aqui, o bem a ser protegido ainda é o interesse do Estado e das autoridades públicas, embora muitas vezes em âmbito estritamente local. Os que dispõem de poder suficiente para se apossar da esfera pública e de seus recursos são os mesmos para quem é fácil ter acesso aos instrumentos de manutenção da lei e da ordem. No entanto, aqueles que estão excluídos em virtude de sua classe social permanecem, por definição, desprotegidos. De acordo com o Artigo 144 da Constituição brasileira, a missão da polícia é a “preservação da ordem pública”, definida no capítulo “Da defesa do Estado e das instituições democráticas”. “Ordem pública” e “paz social” constituem os referenciais dominantes, enquanto a figura do cidadão permanece ausente – mesmo em um documento que articula a mais completa declaração de liberdades civis. No plano retórico, ao menos, as necessidades do Estado continuam a ter precedência sobre aquelas do indivíduo.

A recém-cunhada expressão “segurança do cidadão” retira do Estado e da elite sociopolítica o poder de definir medo, crime e segurança, delegando-o às pessoas do povo. Nessa formulação, as autoridades do Estado estão a serviço da população, e não o contrário. A segurança do cidadão é baseada, em termos ideais, no policiamento por consentimento, não por repressão; em punição, tendo em vista a reabilitação, e não a desforra. Fundamenta-se também nos princípios (e nas restrições) dos direitos humanos e das liberdades civis universais. Essas três conceituações de segurança são correntes no Brasil e vêm sendo empregadas, em momentos diferentes, pelas autoridades públicas, pela mídia e pela sociedade civil. Assim, por exemplo, embora a atual administração do PT sem dúvida tenha entre suas propostas a segurança do cidadão, definida em suas próprias diretrizes políticas,9  ainda é pressionada em certas esferas para reconhecer o comércio de drogas ilícitas e a narcoviolência como questão de segurança nacional (a chamada “colombianização” de cidades brasileiras). Reiteradas demandas para “endurecer” os métodos de policiamento e uma visível oscilação no âmbito dos governos estaduais entre as estratégias duras e aquelas “orientadas para a comunidade” demonstram o dinamismo desse debate permanente sobre os próprios termos de referência, bem como a importância do engajamento da sociedade civil.

Policiamento

Na área do policiamento, foram criadas organizações da sociedade civil voltadas para dois objetivos: (1) fiscalizar as atividades da polícia, especialmente em relação a denúncias de abusos contra os direitos humanos; e (2) trabalhar em conjunto com a polícia local, mediante conselhos formados em associação com a comunidade, para alocar os recursos de policiamento de acordo com as necessidades e prioridades locais.

Supervisão

Após a transição para o regime democrático no Brasil, tem sido observado um constante aumento nos índices de criminalidade e violência, acompanhado de correspondente elevação nos abusos policiais: uso excessivo de força, execuções sumárias e tortura de suspeitos. Não vem ao caso recapitular as diversas análises das disfunções da polícia no Brasil (Chevigny, 1995; Human Rights Watch, 1998; Pereira, 2000). Basta frisar que a ineficiência e o abuso sistemático dos direitos humanos por parte da polícia são determinados por insuficiência de recursos; corrupção; falta de treinamento, de procedimentos e de disciplina; impunidade inerente ao viés dos tribunais da justiça militar (que julgam os crimes cometidos pela polícia militar) e das corregedorias internas; práticas institucionais consolidadas; e uma visão de segurança pública que reflete e reforça a estratificação e as desigualdades sociais.

Em meados da década de 90, já estava claro que a polícia teria de ser posta sob algum tipo de supervisão civil. O governo estadual de São Paulo, sob a liderança de Mário Covas, um dos fundadores do PSDB, foi pioneiro na implantação de um novo instrumento, a ouvidoria da polícia, em 1995. Outros seguiram o exemplo, de início em estados governados pela esquerda ou pela centro-esquerda.10  

Em geral as ouvidorias estão alocadas nos gabinetes das secretarias estaduais de segurança pública, ou equivalentes, integrando portanto a estrutura do poder Executivo.11  Sua tarefa é, literalmente, ouvir queixas dos cidadãos sobre casos de desvio de conduta, corrupção ou omissão por parte da polícia,12  preparar um dossiê inicial, encaminhar as queixas às corregedorias da polícia e acompanhar o andamento das investigações. Podem também encaminhar casos ao Ministério Público. Embora com freqüência sejam interpretadas como “serviços de ombudsman”, as ouvidorias não gozam da independência e dos amplos poderes usufruídos por essas instâncias em outros contextos. A corregedoria da polícia continua a monopolizar os recursos para empreender investigações sobre alegações de má-conduta policial, e muitas vezes obstrui o processo, ou se recusa a iniciar um inquérito. Por esse motivo, as ouvidorias constituem, em termos institucionais, uma espécie de mecanismo interno semi-independente.

A despeito dessas limitações, as ouvidorias têm assegurado o mais elevado grau de transparência, entre todos os mecanismos de supervisão da polícia.13  Inovaram ao publicar os primeiros índices confiáveis sobre a execução de civis por policiais, bem como sobre a morte de policiais em serviço e fora dele. E é significativa sua contribuição para romper a cultura da impunidade policial no Brasil. A população tem a garantia do anonimato, fundamental para superar os temores reais e justificados de represálias. As queixas vêm progressivamente tomando corpo e os abusos são denunciados de forma aberta, evolução que decerto reflete a crescente confiança nas autoridades estaduais. Em 2000, a maioria das queixas encaminhadas à ouvidoria do Rio de Janeiro foi anônima; já entre janeiro e julho de 2001, por volta de 150 queixas foram apresentadas pessoalmente. Tal como em cerca de metade dos estados brasileiros, no Rio de Janeiro existe um programa de proteção a testemunhas que é acionado nessas situaçõ