A relação entre os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), por um lado, e os direitos humanos, por outro, tem gerado certa confusão na sociedade civil. Abordo aqui a questão sob a perspectiva de um ativista dos direitos humanos, e é possível que não corresponda aos padrões dos que possuem uma compreensão apurada de seus fundamentos teóricos e legais.
Ao iniciar a discussão sobre os Objetivos do Milênio devemos ter em mente a realidade mais ampla. No mundo atual, não há maior desafio do que combater a pobreza e suas manifestações. Infelizmente, nós nos tornamos insensíveis à magnitude do problema. Enquanto estamos discutindo isso, cerca de uma em cada seis pessoas no mundo – o que significa quase 1 bilhão de pessoas – passa fome todos os dias. Estima-se que 30 mil seres humanos – crianças, em sua maioria – morrem a cada dia em conseqüência da pobreza. No último ano, pelo menos 500 mil mães morreram no parto, ou de desnutrição, sem qualquer justificativa.
A chamada comunidade internacional costuma agir com espantoso atraso. Preferimos lidar com as conseqüências do que atuar ao perceber os alertas iniciais. Os atuais ataques de gafanhotos na África Ocidental constituem um exemplo ilustrativo dessa questão, para não falar da crise em Darfur. Quase 3 milhões de pessoas morreram de aids no último ano. O direito à educação fundamental é negado a 120 milhões de crianças que estão fora das escolas – e os números são bem mais elevados se incluirmos as que freqüentam escolas totalmente ineficientes, com taxas de matrícula irreais. Um bilhão de pessoas, em sua maioria mulheres e crianças, não têm acesso aos serviços sanitários.
Escancarada diante de nós está a maior arma de destruição em massa – a pobreza. Paradoxalmente, o mundo jamais viu tanta prosperidade. Consta que as mil pessoas mais ricas do planeta detêm uma fortuna pessoal maior do que os cerca de 500 milhões de habitantes dos chamados “países menos desenvolvidos”.
Envergonhados pela magnitude dessa violação aos direitos humanos fundamentais e perturbados pela potencial reação sobre a segurança global dessa extrema privação enfrentada pela maioria da população, os líderes mundiais, em setembro de 2000, assumiram um compromisso. Na maior reunião de chefes de Estado da história da humanidade, subscreveram um documento solene no qual prometiam libertar seus concidadãos da indignidade e do sofrimento que acompanham a abjeta pobreza. No momento em que se iniciava um século e um milênio, recapitularam os resultados das diversas conferências de cúpula das Nações Unidas da década de 90, e estipularam para si mesmos um período de 15 anos, ou seja, até 2015, para atingir um conjunto de metas e objetivos mínimos, embora concretos. Esse programa ficou conhecido como Metas de Desenvolvimento do Milênio, ou Objetivos de Desenvolvimento do Milênio.
O nome deste Colóquio faz referência aos desafios que a Declaração do Milênio e as metas visadas representam para os direitos humanos. Mas, ao contrário disso, estou absolutamente convencido de que a interpretação e a utilização adequadas da Declaração e dos Objetivos do Milênio oferecem uma oportunidade poderosíssima de converter em realidade as aspirações dos direitos humanos. Da mesma forma, assegurar que o discurso sobre os Objetivos esteja de contínuo ancorado no contexto dos direitos humanos é a única maneira de garantir que eles sejam atingidos de modo abrangente e sustentável. A meu ver, os Objetivos do Milênio e os direitos humanos são interdependentes e se reforçam mutuamente.
Procurarei a seguir explicar por que acredito nisso.
Os Objetivos do Milênio no contexto
dos direitos humanos
É surpreendente que mesmo pessoas bem-informadas com freqüência não se lembram que os Objetivos derivam da Declaração do Milênio, sendo posteriores a esse documento original. Gostaria, portanto, de dedicar especial atenção à Declaração do Milênio, que representa a base regulamentar e contextual do estabelecimento dos Objetivos e das Metas do Milênio.
A Declaração do Milênio apresenta oito seções de peso equivalente. A primeira seção trata de “Valores e princípios”, sendo todos integralmente fundamentados no discurso sobre os direitos humanos. Cito aqui alguns trechos dessa seção pertinentes a esta discussão:
Pensamos que o principal desafio que se nos depara hoje é conseguir que a globalização venha a ser uma força positiva para todos os povos do mundo, uma vez que, se é certo que a globalização oferece grandes oportunidades, atualmente seus benefícios, assim como seus custos, são distribuídos de forma muito desigual.
[…]
Consideramos que determinados valores fundamentais são essenciais para as relações internacionais no século 21. Entre eles figuram:
A liberdade. Os homens e as mulheres têm o direito de viver sua vida e de criar seus filhos com dignidade, livres da fome e livres do medo da violência, da opressão e da injustiça. A melhor forma de garantir esses direitos é através de governos de democracia participativa baseados na vontade popular.
A igualdade. Nenhum indivíduo ou nação deve ser privado da possibilidade de se beneficiar do desenvolvimento. A igualdade de direitos e de oportunidades entre homens e mulheres deve ser garantida.
[…]
As outras seções são: “Paz, segurança e desarmamento”; “Desenvolvimento e erradicação da pobreza” (os oito Objetivos foram originalmente extraídos desta seção); “Proteção de nosso ambiente comum”; “Direitos humanos, democracia e boa governança”; “Proteção dos grupos vulneráveis”; “Responder às necessidades especiais da África”; e “Reforçar as Nações Unidas”.
Cito ainda alguns trechos relevantes da seção “Direitos humanos, democracia e boa governança”:
Não pouparemos esforços para promover a democracia e fortalecer o Estado de Direito, assim como o respeito por todos os direitos humanos e liberdades fundamentais internacionalmente reconhecidos, nomeadamente o direito ao desenvolvimento.
Decidimos, portanto:
• Respeitar e apoiar integralmente a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
• Esforçar-nos por conseguir a plena proteção e a promoção dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais de todas as pessoas, em todos os países.
• Aumentar, em todos os países, a capacidade de aplicar os princípios e as práticas da democracia e o respeito pelos direitos humanos, incluindo os direitos das minorias.
• Lutar contra todas as formas de violência contra a mulher e aplicar a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher.
• Adotar medidas para garantir o respeito e a proteção dos direitos humanos dos migrantes […] para acabar com os atos de racismo e xenofobia, cada vez mais freqüentes em muitas sociedades, e para promover maior harmonia e tolerância em todas as sociedades.
• Trabalhar coletivamente para conseguir que os processos políticos sejam mais abrangentes, de modo a permitir a participação efetiva de todos os cidadãos, em todos os países.
• Assegurar a liberdade de comunicação, para cumprir sua indispensável função e o direito do público de ter acesso à informação.
A Declaração não deixa margem a dúvidas nem a negociação. Os Objetivos do Milênio referem-se à constatação do direito ao desenvolvimento dentro de um contexto mais amplo de direitos humanos. O desenvolvimento é visto como imperativo, com base na justiça, e não como uma opção de caridade. Os valores fundamentais para se atingir os Objetivos são os de partilha da responsabilidade, indivisibilidade, ausência de discriminação, igualdade e responsabilidade – todos eles extraídos de um dicionário de direitos humanos. Os Objetivos do Milênio são validados na base da legitimidade e dos valores dos direitos humanos, sem o que seriam um conjunto de metas vazio.
Vinculação dos Objetivos aos padrões de direitos humanos
Muitas têm sido as contribuições referentes aos dispositivos, medidas e instrumentos específicos dos direitos humanos aos quais os Objetivos do Milênio podem se alinhar, mas todas possuem como característica comum o fato de suas conexões serem amplas e óbvias. Como a Declaração do Milênio considera o desenvolvimento sob a perspectiva dos direitos humanos, podemos dizer que são relevantes todas as medidas estabelecidas em convenções e tratados internacionais como: Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH); Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC); Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP); Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (CEDR); Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDM); Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC). Isso foi detalhado no recente relatório apresentado à Assembléia Geral da ONU pelos relatores especiais para Saúde da Comissão dos Direitos Humanos (27 de setembro de 2004):
Objetivos de Desenvolvimento do Milênio
e medidas de direitos humanos
Objetivos de Desenvolvimento do Milênio |
Principais medidas referentes |
1. Erradicar a pobreza extrema e a fome |
DUDH Artigo 25(1); PIDESC Artigo 11 |
2. Atingir o ensino básico universal |
DUDH Artigo 25(1); PIDESC Artigos 13 e 14; CDC Artigo 28(1)(a); CEDM Artigo |