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A Declaração de Doha e a saúde pública

O Acordo TRIPS (Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights), da Organização Mundial do Comércio (OMC), acarretou importantes mudanças nas normas internacionais referentes aos direitos de propriedade intelectual.1  Devido ao amplo alcance de suas implicações, em particular para os países em desenvolvimento, tornou-se um dos componentes mais controversos do sistema da OMC. Intensas discordâncias sobre seu escopo e seu conteúdo surgiram durante a Rodada Uruguai entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento, e entre os próprios países desenvolvidos. A implementação do Acordo e sua revisão, em conformidade com a “agenda construída”, também geraram contenda.2  

Foi esse o caso dos produtos farmacêuticos. Por sua própria natureza, as patentes permitem que os fabricantes de produtos farmacêuticos estabeleçam preços acima dos custos marginais, recuperem despesas com pesquisas e desenvolvimentos e obtenham lucro. A crise da aids na África e as evidentes implicações negativas das patentes para o acesso dos pobres aos medicamentos trouxeram à tona o relacionamento entre o TRIPS e a saúde. Considerando que mais de 30 milhões de pessoas vivem com aids, em sua maioria nas regiões mais pobres do mundo, a necessidade de enfrentar o problema de acesso a medicamentos patenteados surgiu como prioridade global. Embora seja verdade, como argumenta a indústria farmacêutica, que outros fatores – como infra-estrutura e manutenção profissional – desempenham papel central na determinação do acesso aos medicamentos,3  é verdade também que os preços resultantes da existência de patentes determinam, em última instância, quantos morrerão de aids e de outras doenças nos próximos anos.

As questões levantadas a respeito das implicações do Acordo TRIPS sobre a saúde pública se refletiram na adoção, por iniciativa dos países em desenvolvimento, da Declaração de Doha sobre o Acordo TRIPS e a Saúde Pública4  na Quarta Conferência Ministerial da OMC (de 9 a 14 de novembro de 2001). A Declaração de Doha reconhece a “gravidade” dos problemas de saúde pública que afligem países pouco desenvolvidos e em desenvolvimento, destacando os que decorrem de aids, tuberculose, malária e outras epidemias – mas não se limitando a estes. A Declaração reflete as preocupações desses países sobre as implicações do Acordo TRIPS em relação à saúde pública em geral, sem se restringir a determinadas doenças.

Embora reconheça o papel da proteção à propriedade intelectual “para o desenvolvimento de novos medicamentos”, a Declaração se preocupa especificamente com os possíveis efeitos sobre os preços. Afirma que o Acordo TRIPS não pretende e não deve impedir que seus membros tomem medidas para proteger a saúde pública, e precisa ser interpretado de acordo com isso:

4. Nós concordamos que o Acordo TRIPS não impede e não deveria impedir seus membros de adotar medidas para proteger a saúde pública. Em conseqüência, enquanto reiteramos nosso compromisso com o Acordo TRIPS, nós afirmamos que o acordo pode e deve ser interpretado e implementado de modo a apoiar o direito dos membros da OMC de proteger a saúde pública e, em particular, de promover o acesso aos medicamentos para todos.

Assim sendo, nós reafirmamos o direito dos membros da OMC de utilizarem, em toda sua extensão, as disposições do acordo TRIPS que fornecem a flexibilidade necessária a esse propósito.

A Declaração de Doha esclarece que os membros têm direito de adotar um princípio internacional de extinção de direitos (que permite aceitar importações paralelas).5  Declara ainda que o “efeito das disposições previstas no Acordo TRIPS […] é dar liberdade a cada membro para estabelecer seu próprio regime de extinção, sem contestação”. De modo similar, confirma o direito de cada membro conceder licenças compulsórias nos termos por ele mesmo determinados. Permite também que os países menos desenvolvidos posterguem a introdução de patentes farmacêuticas até 2016. A Declaração esclarece ainda que as “crises de saúde pública” podem representar “uma emergência nacional ou outras circunstâncias de extrema urgência”. “Emergência”, nesse contexto, pode se referir a problemas de curto ou de longo prazo.

A confirmação de que o Acordo TRIPS deixa espaço para a flexibilidade em nível nacional possui importantes implicações políticas e jurídicas. Indica que as pressões para impedir que as flexibilidades disponíveis sejam utilizadas contrariam o espírito e a finalidade desse Acordo. Em termos jurídicos, isso significa que os painéis e o Órgão de Solução de Controvérsias devem interpretar o Acordo, bem como as leis e os regulamentos adotados, para que a implementação se ajuste às necessidades de saúde pública de cada país-membro.

No parágrafo 6, a Declaração de Doha instrui o Conselho do TRIPS quanto à maneira de abordar uma questão delicada: a maneira de países-membros com insuficiente ou nenhuma capacidade de produção fazerem uso efetivo da licença compulsória.6  O problema básico, subjacente ao texto desse parágrafo, está nas limitações de vários países em desenvolvimento para fabricar seus próprios medicamentos. A capacidade de produção da indústria farmacêutica está distribuída de forma bem irregular pelo mundo. Não são muitos os países que podem produzir ingredientes ativos e formulações, ou mesmo desenvolver estudos e pesquisas.

Quando o Acordo TRIPS entrar em pleno vigor (após 2005), os governos de diversas nações enfrentarão dificuldades para adquirir medicamentos a preços acessíveis. Até o momento, por exemplo, países como a Índia não aceitam a patente de produtos farmacêuticos e fabricam versões genéricas por uma fração do preço do item patenteado. Se os preços de produtos patenteados forem muito altos, um país-membro tem a opção de emitir uma licença compulsória para importar as versões genéricas produzidas por outros países. O problema é que, à medida que todos os países passarem a respeitar na íntegra o Acordo TRIPS – no máximo até 2005 – se tornará impossível produzir e exportar substitutos de medicamentos patenteados a preços menores. Em conseqüência, as fontes de novos medicamentos acessíveis vão secar e os países sem suficiente capacidade de produção e sem demanda de mercado não serão capazes de obter uma licença compulsória, seja para produção local ou para importação: ficarão totalmente dependentes das dispendiosas versões patenteadas.

No final de 2002, a Declaração de Doha solicitou ao Conselho do TRIPS “que encontrasse uma solução rápida para esse problema e desse um parecer ao Conselho Geral antes de terminar 2002”. Todavia, só se chegou a um acordo em 30 de agosto de 2003, ao fim de uma batalha diplomática na qual os Estados Unidos acabaram concordando com um texto que cobria todas as doenças,7  acatando a instrução da Declaração.8  A “solução” acordada baseou-se em um arranjo elaborado pelo Presidente do Conselho do TRIPS9  e em uma “Declaração do Presidente” proposta pelos Estados Unidos como condição para aceitar o acordo e atender à indústria farmacêutica americana.

Para os propósitos da Decisão, um “membro importador habilitado” significa qualquer país-membro menos desenvolvido e qualquer outro membro que tenha feito uma notificação ao Conselho do TRIPS sobre sua intenção de usar o sistema como importador. Alguns países informaram que só recorrerão ao sistema em caso de emergência nacional, situações críticas ou utilização pública não-comercial, e que não adotarão o sistema em outros casos. O país importador precisa fazer uma notificação ao Conselho do TRIPS que:

• especifique o(s) nome(s) e a(s) quantidade(s) esperada(s) do(s) produto(s) necessário(s);

• confirme que o membro importador habilitado em questão, que não seja um país menos desenvolvido, assegure possuir pouca ou nenhuma capacidade de produção no setor farmacêutico para o(s) produto(s) em questão; e

• confirme que, quando um produto farmacêutico é patenteado em seu território, ele concede ou pretende conceder uma licença compulsória, de acordo com o Artigo 31 do Acordo TRIPS e as disposições desta Decisão.

Além disso, a licença compulsória emitida pelo membro exportador conterá as seguintes condições:

• Apenas a quantidade necessária para atender às necessidades do membro importador habilitado pode ser fabricada ao abrigo da licença, e a totalidade dessa produção será exportada aos países que tiverem notificado o Conselho do TRIPS a respeito de suas necessidades.

• Os itens produzidos ao abrigo da licença serão claramente identificados como produzidos em conformidade com o sistema definido nesta Decisão, por meio de etiquetagem ou outra marcação específica. Os fornecedores devem distinguir esses produtos por sua embalagem especial e/ou pela coloração ou formato peculiar, desde que essa distinção seja viável e não tenha impacto significativo sobre o preço.

• Antes de iniciar o embarque, o licenciado publicará em um site na internet o seguinte: (1) quantidades fornecidas a cada destino; e (2) características distintivas do produto.

Além disso, o membro exportador notificará o Conselho do TRIPS sobre a concessão da licença, incluindo as condições anexadas a ela. Quando uma licença