JOSÉ RICARDO CUNHA
Co-autores: Andréa Diniz (IBGE); Alexandre Garrido da Silva e Isolda Abreu de Carvalho Mattos Sant’Anna (UERJ); Diana Felgueiras das Neves, Rodrigo da Fonseca Chauvet e Tamara Moreira Vaz de Melo (UERJ); Lia Motta Gould e Priscila de Santana (PUC-Rio)
Os direitos humanos constituem o principal instrumento de defesa, garantia e promoção das liberdades públicas e das condições materiais essenciais para uma vida digna. Os poderes Executivo e Legislativo são sempre solicitados a atuar conforme esses direitos. Contudo, o Poder Judiciário é o último guardião de tais direitos, e a esperança de proteção em relação a eles. Por isso, faz-se imperioso lutar pela efetividade de sua tutela jurisdicional.
A busca da efetividade dos direitos humanos na esfera judiciária torna necessário averiguar a maneira pela qual os juízes concebem e aplicam as normas de direitos humanos, especialmente as que protegem os direitos econômico-sociais. Para tanto, a pesquisa “Direitos Humanos no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro: Concepção, Aplicação e Formação” tempor objetivo investigar o grau de efetividade – justiciabilidade – dos direitos humanos na prestação da tutela jurisdicional.
Na primeira fase, cuja análise é objeto do presente trabalho, investigou-se a primeira instância da Comarca da Capital do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.2
A pesquisa foi organizada em duas vertentes: uma teórica e outra prática. Na vertente teórica, realizou-se um estudo sistemático dos fundamentos jurídicos, filosóficos e políticos dos direitos humanos, a partir das obras de Carlos Santiago Nino, Antonio Enrique Pérez Luño, Chaïm Perelman e Robert Alexy.
Na vertente empírica, efetuou-se um levantamento em 225 das 244 varas em funcionamento de primeira instância do Tribunal de Justiça na cidade do Rio de Janeiro. Um questionário foi aplicado aos juízes, a fim de investigar o modo de cada magistrado responsável pela prestação jurisdicional naquela vara conceber e aplicar os direitos humanos. O questionário também procurou levantar o nível de formação dos juízes na área de direitos humanos.
Para a análise principal, os dados coletados foram estatisticamente tratados por meio de modelos de regressão logísticos multinomiais, buscando-se especialmente a explicação da utilização das normativas internacionais de proteção aos direitos humanos na fundamentação das sentenças proferidas pelos juízes, através das demais variáveis envolvidas. Basicamente, o procedimento utilizado consistiu em aplicar testes de hipótese acerca da contribuição de cada variável para o poder de explicação do modelo, em um nível de 5% de significância. Foram excluídas do modelo as variáveis cuja contribuição não foi considerada significativa, no nível fixado, para explicar a utilização das normativas na fundamentação das sentenças.
Considerando que o objeto primordial da pesquisa era a tutela jurisdicional levada a cabo pela ação do juiz, foi preciso coletar os dados diretamente, em fonte primária, ou seja, por meio de entrevistas diretas aos juízes.3 Optou-se pela comarca da capital do Rio de Janeiro, tanto por sua representatividade em relação às demais do estado quanto pela existência de maior fluxo e maior diversidade de processos.
A unidade de pesquisa considerada foi a vara, uma vez que é por meio dela que o juiz atua e o usuário tem a possibilidade de acesso à Justiça. Sendo assim, o questionário corresponde à vara, e não ao juiz, não obstante seja este o interlocutor. Nas varas com mais de um juiz, titular e substituto(s), foi preenchido apenas um questionário. Nos casos em que um juiz acumulava mais de uma vara, as respostas dadas por ele foram repetidas e incluídas em cada uma das varas.
O cadastro das unidades de pesquisa foi feito a partir da relação de varas extraída em novembro de 2003 da página do Tribunal de Justiça na internet: . Constavam então 255 varas, incluindo-se o fórum central e os regionais. Por ocasião do contato, em campo, para realizar as entrevistas, foi feita a atualização do cadastro e se constatou que algumas das varas não haviam sido instaladas, ou haviam sido fundidas com outras já existentes. Sendo assim, o cadastro final contém 244 varas.
Para a coleta dos dados, realizada entre janeiro e maio de 2004, foram visitadas 225 das 244 varas cadastradas;4 e em cerca de 40% das varas o questionário não foi preenchido. Os principais motivos da perda das unidades informantes foram: (1) recusa não-justificada do juiz; (2) recusa do juiz sob a alegação de que direitos humanos não fazem parte de seu trabalho; (3) não-recebimento do pesquisador pelo juiz.
Para uma melhor apreensão dos indícios de salvaguarda jurisdicional dos direitos humanos, foram elaboradas questões que pudessem compor tanto os elementos subjetivos quanto os objetivos conformadores das condições reais de decisão acerca da matéria. Com efeito, o desenho final do questionário contemplou questões relacionadas a: características do juiz; formação pré-universitária e universitária; concepção de direitos humanos; e atuação na prestação de tutela jurisdicional. O instrumento de coleta foi desenvolvido de modo a poder ser utilizado pelos pesquisadores, em entrevistas diretas com o juiz responsável por cada uma das varas, mas que permitisse também o preenchimento autônomo pelo próprio juiz, quando ele se recusasse a receber o entrevistador.
Análise dos dados
A seguir apresentamos uma sistematização das informações coletadas nos questionários, acompanhada de uma análise das respostas obtidas.
Perfil dos juízes
O Judiciário, como instituição social, ainda reflete a predominância masculina nas relações de poder. Pode-se perceber que a maioria dos juízes é de homens, totalizando um percentual de 60%. Mas as instituições vêm se feminizando ao longo dos anos, graças a mudanças na sociedade, e já se pode notar uma significativa aproximação entre os dois percentuais. Esse fenômeno é mais evidente na primeira instância, na qual os recém-juízes iniciam o exercício de sua função. Acredita-se que, quanto mais superior é a instância de julgamento, menor a porcentagem de mulheres juízas atuantes, pois ali laboram magistrados mais antigos.
A Tabela 1 mostra a distribuição dos juízes que participaram da pesquisa, por tempo de magistratura e segundo classes de idade. Nela é possível notar que são pequenas as chances de alguém se tornar juiz titular antes de completar 30 anos. Do total de juízes titulares, há apenas 2 (2%) nessa faixa de idade. Entre os 77 juízes que se incluem na faixa de 31 a 50 anos, que representam quase 75% dos entrevistados, 44 têm de 11 a 20 anos de magistratura. E é essa a classe de idade que figura como maioria relevante na primeira instância do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Nenhum juiz dessa classe de idade tem mais de 20 anos de carreira, o que nos leva a crer que os juízes com mais de 20 anos de magistratura costumam ser promovidos, estando portanto nos órgãos de segunda instância. Os juízes com mais de 50 anos, em sua maioria, contam com tempo de 11 a 20 anos de magistratura. Entre estes, apenas 2 possuem menos de 5 anos de carreira. É raro alguém iniciar o ofício de magistrado nessa faixa etária; e é raro, também, que um juiz titular continue a exercer atividades magistrais na primeira instância depois dos 50 anos.
Os percentuais mais impressionantes – porém não surpreendentes – se referem a cor ou raça dos magistrados, conforme mostra o Gráfico 1. Os autodeclarados brancos encerram 86% do total de juízes. Isso confirma a existência de uma intensa exclusão da população negra/parda da carreira de magistratura, visto que, segundo o Censo de 2000, os negros5 e pardos representam 44,6% da população brasileira.
Formação específica em direitos humanos
Considerando-se que a inclusão do tema “direitos humanos” na formação dos juízes, sobretudo na graduação, é um fator capaz de influenciar a aplicação, pelos magistrados, das normas que asseguram tais direitos, houve questões a respeito da existência de tal disciplina nas faculdades.
As disciplinas relacionadas à temática dos direitos humanos não contam em geral com grande prestígio nos cursos de graduação das universidades. Quando perguntados acerca da existência de alguma cadeira de direitos humanos durante o bacharelado, 84% dos magistrados responderam negativamente. Dentre as respostas afirmativas, apenas 4% dos juízes tiveram a disciplina como obrigatória, enquanto para 12% ela havia sido opcional.
A despeito da quase inexistência de oferta da disciplina nas faculdades, tendo em vista a relevância do tema, pediu-se aos juízes para manifestarem seu interesse pelos estudos relacionados aos direitos humanos. Suas respostas estão reproduzidas no Gráfico 2. A análise do gráfico permite depreender o seguinte raciocínio:
42 magistrados (40%) nuncaestudaram direitos humanos. Essa informação revela que quatro entre dez juízes não tiveram espaço formal para um aprofundamento sistemático das questões fundamentais relativas aos direitos humanos.
Vale destacar que, apesar do relativo distanciamento da temática ora abordada por boa parte dos juízes, os mesmos demonstraram interesse em participar de cursos relacionados aos direitos humanos: cerca de 73% estariam dispostos a estudar o tema, conforme aparece no Gráfico 3.
Quando indagados sobre algum tipo de vivência pessoal que pudesse fornecer uma experiência prática em relação aos direitos humanos, o resultado demonstrou um abismo ainda maior entre os juízes e o tema. Apenas 6% dos entrevistados revelaram já ter tido algum tipo de engajamento nessa área.
Analisando os dados aqui expostos, é possível compreender, ao menos preliminarmente, a pouca utilização das normativas de direitos humanos dos sistemas das Nações Unidas (ONU) e da Organização dos Estados Americanos (OEA) nas sentenças dos magistrados. Resta prejudicada a aplicação de normas referentes a um tema tão afastado da realidade dos juízes.
Concepção acerca dos direitos humanos
No plano das teorias jurídica e política, há um consenso razoável em relação ao fato de o tema dos direitos humanos ser fundamental para o correto entendimento do Estado Democrático de Direito. Nessa perspectiva, Jürgen Habermas (2003), ao propor a “eqüiprimordialidade”, isto é, o nexo interno entre direitos humanos e democracia (soberania popular), afirma que não se pode pensar um Estado verdadeiramente democrático sem uma efetiva implementação dos direitos humanos. Isso quer dizer que os cidadãos somente poderão fazer uso efetivo de sua autonomia pública se forem suficientemente independentes, em razão dos direitos humanos uniformemente assegurados. Nesse sentido, o Brasil só poderá concretizar seu projeto de democratização prescrito pela Constituição quando os direitos humanos alcançarem concretamente o cotidiano dos indivíduos com plena força normativa. Para isto, espera-se do Estado uma ação efetiva de promoção dos direitos, seja na linha de frente da ação política, por intermédio dos poderes Legislativo e Executivo, seja na retaguarda por meio da ação garantista do Poder Judiciário. Contudo, é necessário, antes de tudo, saber como os juízes – guardiões últimos da justiça – compreendem os direitos humanos.
Na Tabela 2, pode-se notar que, ao serem questionados sobre a natureza dos direitos humanos, 7,6% dos juízes afirmaram serem “valores sem aplicabilidade efetiva”. Para outros 34,3%, os direitos humanos constituiriam “princípios aplicados na falta de regra específica”; e para 54,3% configurariam “regras plenamente aplicáveis”. É importante ressaltar que cerca de 7% dos juízes concebem os direitos humanos apenas como valores sem nenhuma força jurídica, mesmo após todos os esforços jurídicos e políticos de afirmação de tais direitos. É relativamente semelhante o entendimento de 34,3% dos magistrados, para os quais tais princípios possuem caráter subsidiário, podendo ser aplicados eventualmente, diante da ausência de norma específica. Para eles, qualquer ponderação que siga norma mais específica, inclusive com conteúdo antagônico, levaria à não-aplicação das normas de direitos humanos. Porém, foi majoritária a posição dos que demonstram uma concepção forte de direitos humanos, pois mais de 50% dos juízes concebem os direitos humanos como regras plenamente aplicáveis.
Indivisibilidade dos direitos humanos
A execução de sentenças que assegurem a aplicação efetiva das diferentes gerações dos direitos humanos – bem como a defesa desses direitos em um Estado democrático com limitação de recursos financeiros – envolve importantes questões que devem ser objeto de reflexão e ponderação pelos aplicadores do direito.
Historicamente, os direitos humanos surgem como direitos civis opostos à ação invasiva do Estado, na esfera das liberdades individuais e do patrimônio privado, exigindo portanto uma abstenção estatal. Entretanto, considerando a não-exaustividade dos direitos, uma vez que estes surgem e evoluem dentro de um determinado contexto social, novas gerações de direitos se desenvolveram e passaram a integrar o conjunto dos direitos humanos. Consoante Norberto Bobbio (2004, p. 53), os direitos consagrados pela Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 representam “uma síntese do passado e uma inspiração para o futuro: mas suas tábuas não foram gravadas de uma vez para sempre”, pois tais direitos são históricos e constituem um conjunto permanentemente aberto a novas articulações, especificações e atualizações.
De um contexto de “Estado liberal de direito” passamos ao “Estado de bem-estar social”, com a respectiva tutela de outros direitos, tais como: à saúde, à educação, à moradia, à defesa do meio ambiente, entre outros. Esse fato passou a demandar do Estado uma atuação positiva – reguladora e, por vezes, interventora na realidade social e econômica. Algumas controvérsias surgem quanto à efetividade desses direitos sociais e econômicos, pois muitos defendem que sua promoção depende exclusivamente da ação política dos Poderes Executivo e/ou Legislativo; assim, não caberia ao Poder Judiciário tutelar tais direitos quando isso acarretasse obrigação para o Poder Legislativo, autônomo em seus juízos de oportunidade e de conveniência. O problema que se coloca é: há argumentos jurídicos aceitáveis para a não-garantia judicial desses direitos? Ou seja: o Judiciário, como Poder do Estado, pode se abster de assegurar direitos capazes de dotar os cidadãos das condições mínimas de existência, especialmente no contexto de uma sociedade profundamente desigual como a brasileira?
Em última instância, trata-se da relevante questão acerca da indivisibilidade dos direitos humanos. A despeito das diferentes classificações que recebem, sejam direitos civis ou políticos (à vida, à liberdade, à igualdade ou à igual participação política) ou direitos econômicos e sociais (à moradia, ao trabalho, à educação, à saúde), os direitos humanos são complementares e interdependentes. Nesse sentido, podemos citar a resolução n. 32 da Assembléia Geral da ONU, de 1977, que assevera a indivisibilidade dos direitos humanos e seu caráter inalienável, além de ratificar a obrigatoriedade dos direitos econômicos e sociais (ver Mello, 2001, v. I, p. 816).
A Declaração de Direitos Humanos de Viena, de 1993, reitera a concepção indivisível dos direitos humanos ao afirmar, em seu parágrafo 5, a universalidade, a interdependência e o inter-relacionamento entre direitos civis e políticos e direitos econômicos, sociais e culturais. A garantia integral da dignidade da pessoa humana pressupõe a efetividade de todos esses direitos. O exercício da cidadania restaria prejudicado se, embora garantido o direito ao voto, não houvesse a mesma garantia em relação a educação e saúde públicas de qualidade.
Com base nessas considerações, cabe uma visada sobre o posicionamento dos 105 juízes que se dispuseram a responder à seguinte questão: “Acredita que os direitos humanos econômicos e sociais podem ser judicialmente aplicados da mesma forma que os direitos humanos civis e políticos?”. Para um pequeno número de juízes, a aplicação judicial dos direitos econômicos e sociais não pode ocorrer da mesma forma que a dos direitos civis e políticos. Também uma minoria de magistrados acredita que o