· Revista Conectas – Assuntos

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O desenvolvimento político e constitucional da Nigéria tem se entrelaçado com a idéia de promover e proteger os direitos humanos. Desde as conferências constitucionais anteriores à independência,1  passando pela Primeira República, pela Segunda,2  e pelos vários períodos militares, até o atual governo democrático,3  as questões atinentes aos direitos humanos receberam merecida atenção dos discursos jurídico e político. Há um empenho sistemático, na Nigéria, em assegurar a proteção dos direitos humanos dos indivíduos, dos grupos e das comunidades.

A Comissão Willinck4  e a Comissão Oputa5  constituem testemunhos eloqüentes desse esforço combinado para promover e proteger os direitos humanos e a justiça no país. Enquanto a primeira teve por objetivo aliviar a sensação de marginalização dos grupos minoritários da época colonial, a Comissão Oputa analisou casos de abusos dos direitos humanos ocorridos entre 1o de janeiro de 1984 e 28 de maio de 1999.6  O relatório Oputa não pôde ser divulgado7  e tampouco foram implementadas suas recomendações, mas o simples fato de ter sido constituída tal Comissão revelou a preocupação do governo em corrigir os erros do passado em relação a abusos dos direitos humanos.

Embora seja fácil mencionar tais abordagens formais, o mesmo não se pode dizer da efetiva colocação em prática de mecanismos concebidos para favorecer a realização dos direitos humanos básicos. Isto porque existe ainda um verdadeiro abismo entre as declarações oficiais acerca do respeito pelos direitos humanos e sua efetiva implementação. A explicação para isso é que, aparentemente, há ainda incontáveis obstáculos de direito substantivo e processual ou impedimentos que não apenas inibem a efetiva implementação de tais medidas, mas impedem que as grandes massas da população tenham acesso à justiça na Nigéria.

A questão que então se coloca é: quais são esses impedimentos e como podem ser superados, de modo a garantir o acesso à justiça para a grande maioria dos nigerianos? Há algum mecanismo legal já integrado no sistema que poderia ser ativado para assegurar o acesso à justiça no país? Qual tem sido a resposta dos sucessivos governos à demanda pelo cumprimento dos direitos básicos mediante a ampliação do acesso à justiça?

O objetivo deste artigo é examinar tais questões e delinear um novo rumo em busca de promoção e proteção dos direitos humanos na Nigéria, aumentando o acesso à justiça. Inicialmente, discutiremos o conceito de acesso à justiça e sua relação com os direitos humanos, antes de avançar para uma análise dos diversos obstáculos de direito substantivo e processual que conspiram contra um acesso eficaz à justiça. Na parte final, o artigo aborda como o sistema judiciário pode se tornar mais sensível aos anseios e às aspirações dos nigerianos, assegurando o acesso à justiça para indivíduos e grupos e conseqüentemente melhorando a proteção aos direitos humanos.

Estrutura conceitual

O acesso à justiça pode ser visto sob duas perspectivas principais: no sentido estrito e no sentido amplo. No sentido estrito, esse conceito pode ser considerado uma extensão do acesso aos tribunais. Uma conotação mais ampla permite abarcar também o acesso à ordem política e aos benefícios decorrentes do desenvolvimento social e econômico do Estado.8 

Podemos assim afirmar, em termos genéricos, que o acesso à justiça implica acesso à justiça social e à distributiva. No entanto, é importante sublinhar o fato de essas perspectivas não serem necessariamente desvinculadas, pois a possibilidade de obter justiça distributiva em determinado sistema depende em boa parte do nível e da eficácia da justiça social no país. Por conseguinte, a discussão de um dos aspectos do conceito acarreta referências a um ou mais componentes do outro. E isso se deve ao fato de que, sem acesso à justiça, é impossível gozar de qualquer outro direito – seja ele civil, político ou econômico – ou assegurar sua realização. Assim, embora este artigo pretenda enfatizar o conceito no sentido estrito do termo, sua concepção mais ampla também integrará nossa análise.

Levando isso em conta, pode-se então afirmar que o acesso à justiça se refere simplesmente aos mecanismos de direito substantivo e processual existentes em determinada sociedade, destinados a assegurar aos cidadãos a oportunidade de recorrer ao sistema jurídico em busca de reparação contra a violação de seus direitos. Tem o foco nas normas e nos procedimentos existentes, a serem utilizados pelos cidadãos para ir aos tribunais definir seus direitos e obrigações civis.

Há implicações mais amplas. Já foi dito que o acesso à justiça não se limita aos mecanismos processuais para a resolução de contendas, mas inclui outras variáveis – as condições físicas das instalações em que se ministra justiça; a qualidade dos recursos humanos e materiais disponíveis; a qualidade da justiça efetivamente prestada; o tempo demandado para a prestação da justiça; a moral ilibada do prestador da justiça; a conformidade com os princípios do devido processo legal; a existência de condições, em termos de custos e de tempo, para se buscar justiça; a qualidade dos advogados que assistem às partes litigantes; a incorruptibilidade e a imparcialidade dos operadores do sistema.9 

Percebe-se, pois, que acesso à justiça é um conceito abrangente, que inclui a natureza, os mecanismos e até mesmo a qualidade da justiça que se pode obter em determinada sociedade, bem como o lugar do indivíduo no interior desse contexto judicial.

Importante sublinhar também o fato de que o acesso à justiça sem dúvida oferece um indicador importante para avaliar tanto a existência do Estado de Direito quanto a qualidade do governo em determinada sociedade. Isso coloca em foco a insistência atual sobre transparência, accountability e boa governança como panacéia eficaz para o desenvolvimento socioeconômico.10 

Embora o conceito de justiça seja em si de difícil definição,11  é possível dizer, com certa liberdade, que ele engloba eqüidade e imparcialidade. Assim, para haver acesso significativo à justiça é imprescindível a presença no sistema desses dois elementos, de modo a garantir a realização dos direitos fundamentais.

Além do mais, para melhorar o acesso à justiça em qualquer sociedade, é necessário dispor de uma infra-estrutura básica e contar com pessoal adequado, tanto em termos quantitativos quanto qualitativos.

Por exemplo, nos lugares em que os tribunais não dispõem de pessoal suficiente, ou são conduzidos por homens e mulheres moralmente condenáveis, é difícil que o Estado possa assegurar justiça social a seus cidadãos. Funcionários corruptos no Judiciário podem realmente criar impedimentos graves à obtenção da justiça, mesmo que a infra-estrutura e os instrumentos jurídicos sejam operantes e bem-organizados.12 

A interface entre acesso à justiça e proteção aos direitos humanos

A relação do acesso à justiça com a proteção aos direitos humanos decorre do fato de que somente se puderem chegar aos tribunais as pessoas conseguirão defender e reivindicar seus direitos fundamentais. Em outras palavras, as estruturas jurídica e institucional existentes em determinado sistema podem chegar a impedir o acesso dos cidadãos aos tribunais, tornando-os incapazes de buscar o cumprimento e a proteção de seus direitos fundamentais.

Embora alguns desses mecanismos jurídicos e institucionais possam ter sido originariamente criados para atingir determinados objetivos, às vezes chegam a constituir tremendos obstáculos para a promoção e a proteção dos direitos humanos.

Ainda, outros obstáculos surgem da estrutura e da composição dos sistemas políticos e econômicos que operam em determinado país. No caso da Nigéria, tudo indica que uma combinação de obstáculos das duas categorias conduziu a uma incapacidade sistêmica de a ordem jurídica garantir o acesso à justiça no país. A importância dessa segunda categoria de obstáculos deriva do fato de que, para um país do terceiro mundo como a Nigéria, em que o nível de analfabetismo é inaceitavelmente elevado e as pessoas enfrentam excepcionais dificuldades para manter a subsistência, é inevitável que as questões referentes à proteção dos direitos humanos acabem por assumir importância secundária. O professor Claude Ake situou a relevância desses obstáculos no contexto e na perspectiva apropriados ao observar o seguinte:13 

Por motivos que não nos cabe detalhar aqui, alguns dos direitos importantes no Ocidente não têm interesse nem valor para a maioria dos africanos. Assim, por exemplo, liberdade de expressão e liberdade da imprensa não significam muito para uma comunidade rural majoritariamente analfabeta e completamente absorvida pelos rigores da luta cotidiana pela sobrevivência […] se for para fazer sentido, uma Declaração de Direitos e Garantias terá de incluir, entre outros, o direito ao trabalho e a um salário digno, o direito à habitação, à saúde, à educação. Esse é o mínimo pelo qual podemos lutar se queremos algum dia ter uma sociedade consciente dos direitos humanos básicos […] na África, para que os direitos liberais façam sentido no contexto de um povo lutando para se manter à tona sob condições econômicas e políticas extremamente adversas, esses direitos têm de ser tangíveis. Tangíveis no sentido de que suas conseqüências práticas sejam visíveis e relevantes para as condições de existência do povo a que se destinam. E, mais importante, tangíveis no sentido de poderem ser vivenciados por seus beneficiários.14 

Com efeito, para a grande maioria dos cidadãos, as questões relativas à proteção dos direitos humanos parecem um luxo que dificilmente lhes seria consentido.15  O resultado disso é que freqüentemente são vistas como um passatempo elitista feito para atrair as atenções, mesmo quando o objetivo subjacente é a promoção do bem comum.

Fatores que inibem o acesso à justiça na Nigéria

Diversos obstáculos conspiram contra o acesso à justiça na Nigéria: alguns de natureza substantiva, outros, processual, e há ainda os que decorrem do atual sistema político e econômico do país. Examinaremos aqui alguns desses fatores, para verificar de que modo continuam a inibir o acesso à justiça na Nigéria.

Atraso na administração da justiça

Dizer que ocorrem atrasos absurdos na administração da justiça na Nigéria é uma afirmativa prosaica. No entanto, é difícil entender como os nigerianos lograram conviver com esse fenômeno durante várias décadas sem encontrar uma solução definitiva. É freqüente nos depararmos com processos comuns de rescisão ilegal de contratos de trabalho, ou mesmo ações pelo cumprimento de direitos fundamentais, que se arrastam por três, cinco ou mais anos. Diversas circunstâncias podem dar origem a esse atraso: advogados que redigem petições para adiar os processos; incapacidade dos magistrados para emitir suas sentenças no prazo; omissão das autoridades policiais ou penitenciárias no encaminhamento de acusados aos tribunais; aplicação do princípio do juiz natural, pelo qual um processo precisa ser reiniciado sempre que for assumido por um novo juiz etc.16  O resultado é que hoje, na Nigéria, já é quase aceito como fato consumado que a tramitação de um processo judicial levará longos anos até chegar à conclusão.17  Sob tais circunstâncias, é natural os cidadãos relutarem em iniciar processos para fazerem valer seus direitos fundamentais.

Não resta dúvida de que tais atrasos não apenas abalam a confiança pública no processo judicial, mas também solapam a própria existência dos tribunais (ver Oputa, 1992, op. cit.). Isso a despeito de a Constituição de 1999 garantir um julgamento rápido em seu Artigo 36, parágrafo 1, que dispõe: “Na determinação de seus direitos e obrigações civis, incluindo qualquer questão ou determinação por parte de ou contra qualquer governo ou outra autoridade, uma pessoa terá direito a um julgamento justo em prazo razoável por um tribunal estabelecido por lei e constituído de modo a assegurar sua autonomia e imparcialidade”.18  No mesmo sentido, o Artigo 36, parágrafo 4, da Constituição prevê que a pessoa acusada criminalmente sempre terá direito a um julgamento justo, em prazo razoável, por vara ou tribunal competente.

Infelizmente, a Constituição não define o sentido da expressão “prazo razoável”, empregada nos parágrafos citados. A Suprema Corte, porém, teve a oportunidade de dar uma definição no caso de Gozie Okeke,19  no pronunciamento do juiz Ogundare:20 

Em seu sentido comum, o termo “razoável” significa moderado, aceitável, ou não-excessivo. O que é razoável em relação à questão de um réu ter um julgamento justo em um prazo razoável dependerá das circunstâncias de cada caso, inclusive o local ou o país onde o julgamento ocorrer, além dos recursos e da infra-estrutura disponíveis para os órgãos competentes do país. Assim, é enganoso utilizar o padrão ou a situação de fato de um país específico para determinar se os julgamentos em processos penais de outro país envolvem um atraso injustificável […] Uma demanda por um julgamento rápido que não leve em conta as condições e as circunstâncias do país seria irrealista e pior do que o próprio atraso injustificável do julgamento.

Prosseguindo, o magistrado declarou que, para averiguar se o julgamento de um réu ocorreu em prazo razoável, há de se considerar quatro fatores: “a duração do atraso, as razões dadas pela promotoria para o atraso, a responsabilidade do réu em fazer valer seus direitos e o prejuízo a que o acusado possa estar exposto”.21 

De qualquer forma, fica claro que se um julgamento durar mais de três ou quatro anos é difícil dizer que ocorreu “em prazo razoável”. Entre as muitas causas para atrasos no processo judicial, algumas são endêmicas ao próprio sistema – como as regras processuais altamente complexas e técnicas –, enquanto outras são provocadas pelos operadores do sistema – funcionários dos tribunais que dão andamento aos processos judiciais, advogados que requerem infindáveis pedidos que implicam o adiamento do processo e magistrados aos quais falta a virtude da presteza (ver Oputa, op. cit., p. 162).

Embora se possa admitir como inevitável algum atraso em processos cíveis ou penais, tendo em conta a necessidade de assegurar “tempo e condições adequados”22  para as partes se prepararem, um atraso desmedido se torna ofensivo e prejudicial à administração da justiç