· Revista Conectas – Assuntos

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Introdução

Ainda que os direitos indígenas tenham sido matéria de interesse do Sistema Interamericano de Direitos Humanos quase desde o seu nascimento,1  entre 2001 e 2005 a Corte Interamericana de Direitos Humanos (de agora em diante apenas Corte ou Corte Interamericana) solucionou vários casos que, envolvendo esses direitos, desenvolvem linhas jurisprudenciais que implicam avanços significativos em vários sentidos.

Sem dúvida, o Caso Awas Tingni2  foi um marco na pauta de novas abordagens no tratamento, por parte da justiça internacional, daqueles direitos cuja titularidade corresponde coletivamente às comunidades indígenas, em virtude de suas particularidades étnico-culturais em relação à sociedade mais ampla. As sentenças dos Casos Plan de Sánchez,3  Moiwana,4  Yakye Axa5  e Yatama6  permitiram à Corte fortalecer a análise e fazer avanços na aplicação de vários direitos vinculados a território, identidade étnica e participação política.

A partir da análise dessas sentenças, podemos formular algumas reflexões a respeito da importância do Sistema Interamericano de Direitos Humanos para o desenvolvimento dos direitos na região, dos limites e potencialidades na exigibilidade dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, e da dimensão étnico-cultural na reparação de violações aos direitos humanos de populações indígenas.

A interpretação evolutiva dos direitos humanos

Uma leitura não restritiva da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (de agora em diante Convenção Americana) poderia deixar a impressão de que o limitado âmbito e alcance do catálogo de direitos que consagra não é suficiente para proteger as populações indígenas, que no continente americano têm uma importância especial, de acordo com os requerimentos que suas particularidades étnico-culturais impõem. Tampouco o Sistema Interamericano chegou a pôr em vigência, até o momento, instrumentos internacionais que se refiram especificamente aos direitos dos povos indígenas.7 

No entanto, a problemática dos indígenas americanos, submetidos historicamente a processos de dominação, exploração e discriminação centenários, continua sendo inquietante. Nas últimas décadas, o mundo foi testemunha de situações gravíssimas, em diversas regiões da América, nas quais, por ação direta dos Estados ou por sua omissão no cumprimento de suas obrigações para com seus governados, as populações indígenas perderam a vida, a integridade, a identidade, a terra, seus meios de vida e reprodução cultural.

Diante dessas situações, a Comissão e a Corte Interamericanas de Direitos Humanos foram requeridas a atuar em várias oportunidades durante os últimos anos. Sendo sua incumbência fundamental conhecer e julgar as violações aos direitos consagrados na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (artigo 33), elas recorreram à característica de progressividade8  dos direitos humanos para, por meio da jurisprudência, dotar os direitos consagrados na Convenção Americana de um sentido e um alcance que permitam oferecer uma proteção especial a esse importante segmento da população americana.

Para isso, a Corte desenvolveu um método de interpretação dos instrumentos de direitos humanos baseado em três critérios:

1. A polissemia dos termos jurídicos

Os termos jurídicos empregados na redação de um instrumento de direitos humanos têm significado, sentido e alcance “autônomos”, não equiparáveis aos que esses termos podem ter no direito interno.

2. Os instrumentos de direitos humanos são instrumentos vivos

Ou seja, devem ser interpretados de uma maneira nem rígida nem estática, mas concorde com a evolução das condições de vida.9 

3. A integração do corpus juris do Direito Internacional dos Direitos Humanos10 

É útil e apropriado utilizar outros tratados internacionais de direitos humanos distintos da Convenção Americana,11  a fim de considerar a questão sujeita a exame no quadro da evolução dos direitos humanos no Direito Internacional.

A fundamentação jurídica da Corte para estabelecer os dois primeiros critérios de interpretação da Convenção Americana mencionados está, de acordo com o juiz García Ramírez,12  no princípio contido no artigo 31.1 da Convenção de Viena sobre os Direitos dos Tratados, que obriga a interpretar um tratado “de boa-fé, conforme o sentido corrente que deva ser atribuído aos termos do tratado no contexto destes e levando em consideração seu objetivo e fim”. E também, de acordo com García Ramírez, na “regra pro homine, inerente ao Direito Internacional dos Direitos Humanos – freqüentemente invocada na jurisprudência da Corte –, que conduz a uma maior e melhor proteção das pessoas, com o propósito último de preservar a dignidade, assegurar os direitos fundamentais e estimular o desenvolvimento dos seres humanos”.13 

Em relação ao terceiro critério identificado, seu fundamento jurídico está no inciso terceiro do artigo 31 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, que obriga a interpretar os tratados de acordo com o sistema no qual se inscrevem,14  e nas próprias normas de interpretação estabelecidas pelo artigo 29 da Convenção Americana.

Artigo 29. Normas de Interpretação

Nenhuma disposição da presente Convenção pode ser interpretada no sentido de:

a. permitir a qualquer um dos Estados participantes, grupo ou pessoa, suprimir o gozo e o exercício dos direitos e liberdades reconhecidos na Convenção ou limitá-los em maior medida que a prevista nela;

b. limitar o gozo ou o exercício de qualquer direito ou liberdade que possa estar reconhecido de acordo com as leis de qualquer dos Estados participantes ou de acordo com outra convenção em que seja participante um desses Estados;

c. excluir outros direitos e garantias que são inerentes ao ser humano ou que derivam da forma democrática representativa de governo, e

d. excluir ou limitar o efeito que possam produzir a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e outros atos internacionais da mesma natureza. (Convenção Americana)

O direito à propriedade privada e sua

interpretação evolutiva

Com esse método de interpretação, a Corte conseguiu desenvolver o sentido e o alcance do direito à propriedade privada consagrado no artigo 21 da Convenção Americana, permitindo dessa maneira abarcar dimensões como a propriedade coletiva, a territorialidade, a ancestralidade, a sacralidade, imprescindíveis de serem levadas em consideração para a plena garantia desse direito no contexto dos povos indígenas.15  

A Corte parte de um texto jurídico estrito:

Artigo 21. Direito à Propriedade Privada

1. Toda pessoa tem direito ao uso e gozo de seus bens. A lei pode subordinar esse uso e gozo ao interesse social.

2. Nenhuma pessoa pode ser privada de seus bens, exceto mediante o pagamento de indenização justa, por razões de utilidade pública ou de interesse social, e nos casos e segundo as formas estabelecidas pela lei.

3. Tanto a usura como qualquer outra forma de exploração do homem pelo homem devem ser proibidas pela lei. (Convenção Americana)

A simples leitura deste artigo deixaria ver que a Convenção Americana protege o direito à propriedade privada na dimensão individual em que o Direito Civil clássico a concebe. O número 1 desse artigo fala que “toda pessoa” (o que se entende como “cada pessoa”, natural ou jurídica, individualmente considerada) “tem direito ao uso e gozo de seus bens” (ou seja, tem a faculdade para exercer seu domínio sobre os bens que lhe são próprios).

Mas o sentido e o alcance que o Direito Civil outorga ao direito à propriedade privada não são suficientes para abarcar um conjunto muito amplo de realidades relacionadas com o Direito Internacional dos Direitos Humanos. Assim, a Corte Interamericana entendeu que o Direito à Propriedade Privada, no Direito Internacional dos Direitos Humanos, tem um significado distinto que no Direito Civil e, a partir dessa compreensão, interpretou o artigo 21 da Convenção Americana com sentido e alcance concordes com as realidades emergentes às quais coube a ela enfrentar.

No âmbito dos Direitos Indígenas, que agora nos ocupa, e de acordo com as regras de interpretação não restritiva defendidas pelo artigo 29 da Convenção Americana, a Corte Interamericana de Direitos Humanos considerou que:

[…] o Artigo 21 da Convenção protege a propriedade em um sentido que compreende, entre outros, o direito dos membros das comunidades indígenas no quadro da propriedade comunal […] (número 148 da Sentença do Caso Awas Tingni)

A Corte supera o olhar individualista do Direito Civil clássico sobre a propriedade privada e faz com que o artigo 21 da Convenção Americana abrigue a dimensão coletiva da propriedade comunitária indígena. Para ilustrar o novo conteúdo e alcance do artigo 21, a Corte recorre às disposições do Convênio 169 da OIT sobre o direito à propriedade comunal das comunidades indígenas.16 

Indo mais longe, a Corte entende que o dever do Estado de garantir a toda a pessoa o direito ao “uso e gozo de seus bens” (item 1 do artigo 21 da Convenção Americana) inclui ter que delimitar, demarcar e titular o território das comunidades indígenas e, além disso, ter que, enquanto não se efetue a delimitação, a demarcação e a titulação, abster-se de realizar atos que possam afetar “o uso ou o gozo dos bens localizados na zona geográfica onde habitam e realizam suas atividades os membros da comunidade” (parágrafo 153 da Sentença do Caso Awas Tingni).

As restrições aos direitos territoriais indígenas

A sentença do Caso Yakye Axa aborda o complicado tema dos conflitos entre o direito à propriedade privada particular e à propriedade comunal indígena. Estando ambos os direitos sob a proteção da Convenção Americana, o conflito se resolve sempre com a restrição de um deles. A Corte defende que “as pautas para definir as restrições admissíveis ao gozo e exercício desses direitos: a) devem estar estabelecidas por lei; b) devem ser necessárias; c) devem ser proporcionais; e d) devem fazer-se com a finalidade de lograr um objetivo legítimo em uma sociedade democrática”.17 

No entanto, a Corte adverte que no momento de aplicar essas pautas os Estados devem levar em consideração que os direitos territoriais indígenas são de natureza diferente, pois estão intimamente relacionados com a sobrevivência dos povos indígenas e seus membros, sua identidade, a reprodução de sua cultura, suas possibilidades de desenvolvimento e o cumprimento de seus planos de vida.18 

E a restrição que se faça ao direito à propriedade privada de particulares a favor da propriedade comunitária indígena “poderia ser necessária para a consecução do objetivo coletivo de preservar as identidades culturais em uma sociedade democrática e pluralista no sentido da Convenção Americana”.19