· Revista Conectas – Assuntos

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“Toda pessoa tem direito a um nível de vida adequado que lhe assegure, assim como à sua família, saúde e bem-estar, especialmente alimentação, vestuário, habitação, assistência médica e os serviços sociais necessários”

(Artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948).

Introdução

O debate em torno das políticas públicas e os direitos humanos é relativamente novo na área dos direitos humanos bem como no âmbito acadêmico, especialmente nas ciências sociais. No século passado, teorias de enfoque empírico comportamental dos atores políticos e sociais tiveram maior relevo, motivo pelo qual houve um desprestígio da ação estatal. Em função da queda dos países do bloco soviético, da conseqüente substituição das instituições comunistas e da criação de novos blocos econômicos, como a União Européia, as instituições enquanto tais ganharam maior importância nas ciências sociais.1  Segundo Bucci,2  a necessidade de estudos sobre as políticas públicas estaria ocorrendo na medida em que se busca a concretização dos direitos sociais. No campo dos direitos econômicos, sociais e culturais, as diretrizes voluntárias aprovadas em 2004 pela FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a alimentação),3  assinalaram o papel das instituições na realização do direito humano à alimentação Adequada: “Os Estados […] deveriam avaliar o mandato e o rendimento das instituições públicas correspondentes e, caso seja necessário, criá-las, reformá-las ou melhorar a sua organização e estrutura para contribuir para a realização progressiva do direito a uma alimentação adequada no contexto da segurança alimentar nacional”.4  As mesmas diretrizes estabeleceram inclusive alguns critérios para o funcionamento dessas instituições, de modo especial, a participação cidadã: “Os Estados deveriam velar para que as instituições pertinentes possibilitem a participação plena e transparente do setor privado e da sociedade civil, e em particular de representantes dos grupos mais afetados pela insegurança alimentar”.5 

Nesse contexto, o Programa de Transferência de Renda Bolsa Famíliatornou-se um dos principais instrumentos de combate à fome e de garantia do direito humano à alimentação no Brasil. A proposta vem sendo amplamente elogiada por cientistas sociais e por diversos meios de comunicação em nível mundial. Em recente artigo, publicado pela revista britânica the Economist (15.09.2005), o Bolsa Família é apresentado como uma nova forma de atacar um problema antigo, ou seja, a fome. A revista enfatiza que o Bolsa Família vem sendo o melhor caminho para ajudar os pobres, em comparação com os programas existentes anteriormente. Outros estudos realizados no Brasil destacam que o Programa representa um apoio significativo no sentido de garantir uma alimentação mínima a muitas famílias pobres brasileiras.6  Na opinião de Silva, Yasbek & Giovanni,7  o Bolsa Família possui um significado real para os beneficiários, uma vez que para muitas famílias pobres do Brasil, esse Programa é a única possibilidade de obtenção de uma renda. Quanto à questão da qualidade do Programa e da quantidade de pessoas beneficiadas (mais de 8,5 milhões de famílias até janeiro de 2006), o Programa significa um avanço em relação às propostas antecedentes. Entretanto, na ótica dos direitos humanos, o referido Programa ainda apresenta uma série de entraves, os quais serão analisados neste artigo.

As políticas públicas de proteção social no Brasil

A principal característica das políticas públicas de proteção social no Brasil é a incompatibilização entre os ajustes estruturais da economia à nova ordem econômica internacional, os investimentos sociais do Estado e a garantia dos direitos sociais. Nesta ordem, o pensamento neoliberal até que concebe a necessidade de prestar ajuda aos pobres, mas possui enormes dificuldades em reconhecer as políticas públicas como um direito humano. Em função disso, o princípio das políticas de proteção social obedece muito mais ao discurso humanitário e ao da filantropia. “Esta lógica, que subordinou políticas sociais aos ajustes econômicos e às regras de mercado, moldou para a política social brasileira um perfil despolitizado, privatizado e refilantropizado”.8  É por isso que as intervenções estatais de combate à fome e à pobreza no Brasil caracterizam-se, conforme Magalhães,9  pela timidez, precariedade e intermitência, não assegurando os direitos sociais básicos à população pobre. O modelo bismarckiano baseado na contribuição individual introduzido no Brasil não chegou a ser totalmente institucionalizado e atualmente atravessa uma crise em decorrência da grande informalidade na economia. Para Souza,10  uma das conseqüências desse tipo de política é que os benefícios das políticas públicas de proteção social ficam por vezes limitados à elite, ao invés de serem generalizados às camadas mais desfavorecidas da sociedade. Por outras vezes, as políticas sociais brasileiras são caracterizadas por um alto grau de seletividade, voltadas para situações extremas, muito focalizadas, direcionadas aos mais pobres dentre os pobres, apelando muito mais à ação humanitária e/ou solidária da sociedade do que o provimento de políticas sociais por parte do Estado. Ainda, para Yasbek,11  os fundamentos na solidariedade e em seus componentes éticos e humanizados reforçam o deslocamento de ações de proteção social para a esfera privada,12  colocando inclusive em questão os direitos ora garantidos. Em virtude disso, faltam às políticas sociais no Brasil claras referências a direitos, sobretudo porque o sistema de proteção social brasileiro carece de mecanismos institucionais de exigibilidade administrativa dos direitos. Na verdade, há uma imensa discrepância entre os direitos garantidos constitucionalmente e/ou em diversos acordos internacionais do Estado brasileiro e as possibilidades reais de acesso às políticas sociais enquanto direito humano.

Programas de combate à fome e à pobreza em nível municipal

A adoção de programas de combate à fome e à pobreza em nível municipal através da introdução de programas de transferência de renda tiveram como base a proposta do senador Eduardo Suplicy (PT), apresentada no ano de 1991, ao preceituar legalmente uma renda mínima para todos os cidadãos brasileiros. O projeto do senador Suplicy motivou a publicação de vários artigos na grande imprensa e provocou intensos debates, dividindo opiniões, resultando em adesões e divergências. Esse projeto acabou por abrir novos caminhos no enfrentamento da fome e da pobreza no plano local. A partir de 1995, vários municípios brasileiros, a começar por Campinas, Ribeirão Preto e Brasília introduziram Programas de Renda Mínima, com o intuito de combater a fome e a pobreza. Fonseca13  ressalta que os projetos instituídos distanciam-se da proposta do senador Suplicy, pois introduzem-se o condicionamento e a exigência do compromisso, por parte das famílias pobres, de manterem suas crianças na escola14  para receberem o pagamento de uma Renda Mínima. Os mentores intelectuais desse tipo de auxílio argumentam que a pobreza familiar exerce uma grande influência sobre o ingresso precoce das crianças no mercado de trabalho, já que os custos para manterem as crianças na escola são muito altos. Argumenta-se ainda que, entrando cedo no mercado de trabalho, as crianças saem igualmente cedo da escola, tornando-se adultos com algum tipo de experiência no mercado de trabalho. Porém, devido à baixa escolaridade, acabam tendo somente acesso a empregos precários e conseqüentemente a uma baixa renda. Estando inclusos nesses círculos viciosos, esses novos adultos terminariam contribuindo para a manutenção dos mecanismos de reprodução da pobreza, já que a pobreza de hoje geraria a de amanhã.15  Mesmo que as intenções dessa condicionalidade sejam positivas, esse tipo de política reforça os velhos mecanismos de dependência e da falta de provisão de autonomia aos pobres nas políticas sociais brasileiras.

Além de exigir a manutenção das crianças na escola, a maioria dos Programas de Renda Mínima exige um tempo de residência fixa no município beneficiado, variando normalmente de 2 a 5 anos, como pré-requisito para que a família seja incluída no Programa, objetivando assim inibir a migração de pessoas ao local somente para obterem o benefício. Além disso, grande parte dos Programas estabelece um valor máximo a ser entregue às famílias, sendo que a maioria deles utiliza o teto de meio salário mínimo per capita. Segundo Sposati,16  existe uma tendência de rebaixamento desse valor, o que, conforme a autora, torna esse auxílio uma espécie de “esmola institucionalizada”. Em virtude dos seus critérios de elegibilidade, os Programas de Renda Mínima limitam-se a um público extremamente restrito, havendo uma verdadeira seleção entre os “mais pobres dentre os pobres”17  como conseqüência da falta de uma política baseada em direitos.

O estudo de Lavinas18  indica que os Programas de Renda Mínima no âmbito municipal são de reduzida possibilidade de generalização, uma vez que esses estariam restritos aos municípios com maior disponibilidade de recursos, enquanto os municípios com menor capacidade fiscal – a grande maioria no Brasil – ficariam impossibilitados de instituir tais Programas. Diante disso, Lavinas destaca a necessidade de uma participação maior tanto dos governos estaduais como do governo federal na implementação de medidas de combate à fome e à pobreza no Brasil.

Programas de combate à fomee à pobreza em nível federal

Segundo Bruera,19  começou-se a introduzir no Brasil, a partir dos anos noventa, uma política nacional de segurança alimentar, resultado da campanha de mobilização social, criada pela Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, tendo como protagonista o sociólogo Herbet de Sousa, o Betinho. Durante o governo de Itamar Franco (1992-1994), fundou-se o CONSEA (Conselho Nacional de Segurança Alimentar), um órgão composto por representantes do governo e da sociedade civil, que se tornou um organismo de consulta e de coordenação das políticas governamentais no âmbito da segurança alimentar e do combate à fome.

O governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-1998 e 1999-2002) apostou, durante seu primeiro mandato, através do Plano Real e do conseqüente crescimento econômico advindo daquele plano, na estabilização da economia como forma de combater a fome e a pobreza no Brasil. Naquele período, qualificou-se “simbolicamente” os impactos da estabilização econômica através do propagado aumento do consumo de produtos, inclusive alimentícios, como o frango e o iogurte. Devido a essa prioridade política governamental, os avanços na construção de uma política de segurança alimentar perderam força. Para Flávio Valente,20  tratava-se de uma visão economicista para a resolução dos problemas da fome e da pobreza. Segundo o mesmo autor, a linha de ação do primeiro ano de mandato de Fernando Henrique Cardoso priorizou a “[…] estabilização econômica brasileira a partir da inserção acriteriosa da economia brasileira na economia globalizada, relegando a um segundo plano o enfrentamento imediato das precárias condições de vida de uma grande maioria da população brasileira”.21  

A partir do segundo mandato do governo de Fernando Henrique Cardoso, há uma mudança de orientação, de modo que as políticas de segurança alimentar adquiriram relevância explícita. Dentro da vasta gama de programas públicos, destaca-se a criação de uma Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN). Em decorrência dessa política, vários programas de distribuição de benefícios monetários às famílias pobres com crianças e adolescentes foram instituídos, sobretudo como incentivo ou indução ao acesso a políticas universais como saúde e educação.

Em 1996, foi lançado o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI),22  com o objetivo de eliminar o trabalho de crianças e adolescentes em carvoarias, pedreiras, sisais, canaviais, laranjeiras e olarias. Em 1997, após vários debates, foi lançado o Programa de Garantia de Renda Mínima, que foi vinculado a ações socioeducativas, entrando em operação em 1999. Esse Programa foi reformulado em 2001, passando a se chamar Bolsa Escola23  vinculado ao Ministério da Educação. Em 2001, foram lançados os Programas Agente Jovem24  e Bolsa Alimentação,25  ligados ao Ministério da Saúde. Em 2002, foi criado o Programa Auxílio Gás,26  vinculado ao Ministério das Minas e Energia.

Antes de instituir os programas acima relacionados, o governo federal mantinha um Programa de distribuição de cestas básicas (chamado primeiramente de Programa de Distribuição Emergencial de Alimentos – PRODEA, e, posteriormente, rebatizado como Cesta de Alimentos) voltado para o atendimento de diversos segmentos da população em situação de risco, quais sejam: famílias em condições de indigência; víti