Introdução
Pedidos de processos, busca da verdade, reparações e reforma institucional são cada vez mais comuns nos países que se dispõem a enfrentar abusos cometidos em direitos humanos. Essas abordagens, argumenta-se, são necessárias para combater a impunidade e promover a reconciliação.2 Atualmente, pelo menos doze países da África Subsaariana vivem algum estágio da implementação de medidas de justiça transicional (justiça em tempos de transição), embora não tenha havido nenhuma análise comparativa sobre as esmagadoras limitações com que esses esforços se defrontam.3 Para aqueles que têm a tarefa de projetar estas estratégias futuramente, uma análise desse tipo seria muito valiosa para ajudar a formar expectativas realistas.
Usando uma lente comparativa, este artigo explora os desafios encontrados durante os esforços para exigir justiça em diversos países da África Subsaariana em transição.4 Por exemplo, em muitos casos os processos domésticos não são nem sistemáticos nem movidos no momento certo, em parte devido à precária capacidade judicial. A busca de verdade e as medidas de reparação, freqüentemente implementadas em contextos de conciliação política e de recursos limitados, podem parecer faltados de boa-fé. Na quase ausência de julgamentos e reparações, muitas vítimas são deixadas sem atendimento, particularmente porque os esforços de coibir os responsáveis por abusos aos direitos humanos continuam a ser lentos e irregulares, e os perpetradores continuam ocupando posições de poder.
Este artigo se baseia principalmente nas experiências da República Democrática do Congo (DRC), Gana, Ruanda, Serra Leoa, África do Sul e Uganda. A seleção de casos é deliberada, motivada pelo fato de os países examinados empregarem um discurso explícito de combate à impunidade e de incentivo à reconciliação, e se auto-definirem (ou serem definidos) como países em transição5 . Similarmente deliberada é a decisão de restringir os casos à África Subsaariana, em parte devido a uma combinação de fatores única que é característica desses Estados.6 Embora as fontes precisas dos desafios à justiça transicional na África devam ser examinadas empiricamente, a fraqueza do Estado africano oferece uma explicação preliminar possível: as medidas talvez não tenham os resultados pretendidos (como o combate à impunidade ou a promoção da reconciliação) porque os pressupostos implícitos na sua implementação (como um Estado legítimo e coerente, uma sociedade civil independente e cidadãos com representação política) não estão presentes.
Além disso, muitos dos conflitos que precederam a transição não estão claramente delimitados por fronteiras. Um dos impactos das fronteiras porosas é que as medidas nacionais de combate à impunidade são com freqüência incompletas. Além disso, a pobreza e/ou a distribuição desigual da renda e recursos têm sido freqüentemente apontadas como fatores contruibuintes, assim como conseqüências, do conflito e da ditadura. As medidas de justiça transicional podem procurar esclarecer, e têm um impacto nessas causas primárias da violência e do abuso. Além disso, as dimensões econômicas do conflito e da repressão podem ter conseqüências para a reivindicação de reparações e para as possibilidades de reconciliação. Finalmente, esses países têm estado em transição desde a década de 1990 até hoje, um período em que o campo dos direitos humanos se mostrou mais intervencionista,7 o que significa que os países geralmente estão sob maior pressão para implementar medidas que corrijam (ou pareçam corrigir) a impunidade.
Este artigo apresenta uma retrospectiva e uma genealogia da justiça transicional, e depois examina os muitos obstáculos enfrentados na tentativa de implementar a justiça transicional sob a forma de processos, busca de verdade, reparações e reforma institucional. Em seguida, o artigo explora de que maneira o resultado de, e a demanda por, medidas de justiça transicional foram afetados pelas definições de “vítima” e “perpetrador”, pelo uso de anistias, pelas natureza dos programas de desmobilização, desarmamento e reintegração (DDR) e pela compreensão da reconciliação.
Ele conclui que o não atendimento das expectativas em relação aos esforços por justiça transicional deve-se em parte à insistência numa compreensão institucionalmente exigente de justiça transicional que não é congruente com a qualidade e capacidade das instituições estatais em tempos de transição. As medidas de justiça transicional na África continuam a se revestir de altas expectativas, não obstante as realidades desanimadoras das deficiências institucionais, da precária liderança, da pobreza e do abismo entre o governo e o povo.8 Para que elas possam ser mais efetivas, deve-se: encurtar a distância entre as expectativas e a realidade, tendo expectativas mais modestas a respeito do que as medidas de busca de justiça podem proporcionar; avaliar de modo realista as condições institucionais necessárias para sua implementação bem-sucedida; e investir numa reforma institucional significativa (e às vezes na construção de instituições). Por outro lado, devem-se perseguir caminhos alternativos, complementares, não estatais, para promover a reconciliação – incluindo iniciativas localizadas, informais, que exijam pouco das instituições estatais, ou iniciativas regionais na União Africana.
Retrospectiva e genealogia9 da justiça transicional
A justiça transicional tem sido definida como “um campo de atividade e de inquirição focalizado na maneira pela qual as sociedades encaminham casos passados de abusos de direitos humanos”,10 num esforço para combater a impunidade e promover a reconciliação durante um período de mudança definitiva no panorama político. A mudança de regime pode ocorrer por negociação com o regime anterior, e nesse caso o novo governo sacrifica metas mais ambiciosas nas questões de combate à impunidade em nome de facilitar a paz, a estabilidade e a reconciliação. No entanto, os regimes novos estão cada vez mais tomando a decisão de tratar do passado, e com freqüência usam medidas que incluem processos, mecanismos de busca da verdade, reforma institucional e programas de reparações.
Os processos são considerados o esteio da justiça. Por sua natureza punitiva, os processos podem ajudar a restaurar a primazia da ordem e da lei e deixar claro que a quebra dessa primazia acarreta conseqüências. A punição de criminosos é uma maneira de oferecer “efetiva reparação” às vítimas, e basicamente essa obrigação recai sobre os tribunais domésticos. Nos casos em que o judiciário doméstico não se dispõe ou é incapaz de abrir processo, os processos judiciais internacionalizados podem constituir um recurso alternativo.11 No entanto, em contextos de abusos amplamente disseminados dos direitos humanos, os processos podem ser insuficientes para se alcançar a responsabilização, em parte porque eles abordam os abusos de direitos humanos em termos litigiosos, caso a caso, e podem ser onerosos e demorados. No melhor dos casos, os julgamentos pintam um quadro incompleto do passado e oferecem uma justiça igualmente incompleta.12 Além disso, enfatizar perpetradores e crimes pode deixar de lado vítimas não reconhecidas como tais. Para sanar algumas dessas dificuldades, os processos podem ser complementados por outras medidas, mais centradas nas vítimas.
Os mecanismos de busca da verdade podem operar paralelamente aos julgamentos, pois dão à sociedade a oportunidade de ganhar um entendimento mais amplo sobre as atrocidades passadas. Com uma longa história na América Latina e popularizadas na África pela Comissão Sul-africana de Verdade e Reconciliação (TRC), as comissões de verdade podem dar às vítimas uma oportunidade de falar sobre suas experiências, e permitir que os perpetradores admitam sua responsabilidade. Os esforços de busca da verdade podem deixar patente que as vítimas têm o direito de saber a verdade a respeito dos abusos que sofreram, e que o governo tem o dever de facilitar um processo criando um registro histórico. Comissões de verdade sancionadas pelo governo tornaram-se mecanismos muito comuns para estabelecer uma versão socialmente aceitável da história, validando as experiências de muitas vítimas.13 Há ainda comissões ou projetos não oficiais, conduzidos pela sociedade civil com objetivos semelhantes, que podem ter o papel de “substitutos, complementos ou precursores” das comissões oficiais.14
Mecanismos de busca de verdade podem desenvolver uma definição amplamente aceita de “vítima”, o que às vezes facilita a aplicação de outros mecanismos, por exemplo, os programas de reparações. Como mencionado, o Estado tem o dever de lembrar a vitimização de seus cidadãos. Esta memória pode constituir uma reparação simbólica. No entanto, programas mais amplos de reparações – restituição, compensação e reabilitação – são, segundo a lei internacional, uma obrigação do Estado para com as vítimas, uma espécie de “materialização da admissão de responsabilidade”.15
Tanto os julgamentos como os mecanismos de busca da verdade podem lançar luz sobre as deficiências institucionais que levaram aos abusos, e desse modo deixar à nova administração tarefas como o vetting (um levantamento de antecedentes, definido como “processo formal para identificação e remoção dos cargos públicos de indivíduos responsáveis por abusos”), além de questões mais amplas de reforma institucional. Como parte de medidas mais amplas de reforma institucional, o vetting deve envolver a apreciação de méritos individuais, caso a caso, mais do que a demissão coletiva de pessoas em razão de sua associação, ou de questões políticas. Em outras situações, instituições comprometidas podem ser significativamente alteradas ou mesmo abolidas, criando-se novos órgãos como uma maneira de prevenir recorrências.
As medidas de justiça transicional podem estar intimamente relacionadas. Por exemplo, provas colhidas a partir de processos de busca da verdade podem ser usadas para apoiar processos e determinar beneficiários em programas de reparação. Para o máximo impacto, alguns observadores recomendam implementar medidas de justiça transicional num pacote integrado, em vez de fazê-lo como esforços não relacionados. Se isso não é feito, pode ocorrer uma minimização na credibilidade das medidas: já foi sugerido que programas de reparação executados sem uma exploração detalhada das causas e efeitos dos abusos de direitos humanos podem ser insatisfatórios, do mesmo modo que reparações concedidas sem qualquer tentativa de responsabilização judicial podem ser vistas como corrompidas.16
Ao longo dos anos, iniciativas de justiça transicional vêm exibindo prioridades diferentes.17 Na chamada “Fase I” da justiça transicional – o período pós-Segunda Guerra Mundial, e dos julgamentos de Nurembergue –, o foco da justiça transicional era a criminalização internacional e os subseqüentes processos criminais.18 Vários instrumentos, como a Convenção do Genocídio, foram implementados, instaurando o precedente de que os indivíduos não podiam mais justificar abusos de direitos humanos em nome da cultura institucional ou do cumprimento de ordens. Nesta fase, o perpetrador estava no centro da busca de justiça.19
Durante a Guerra Fria, a procura de justiça transicional ficou muito estagnada.20 Isso durou até a “Fase II”, que abrange as transições ocorridas após o declínio da União Soviética. Nos vários levantes políticos nos países do Cone Sul, na abertura dos Arquivos Stasi na Alemanha, e na purificação na Checoslováquia, conceitos de justiça locais e politizados, associados com a construção do Estado, foram implementados. A justiça foi além dos processos e incluiu mecanismos pouco explorados, como as comissões de verdade, reparações, vetting e outras medidas de restauração da justiça, tornando a justiça transicional mais “comunitária” e mais voltada a um “diálogo” entre perpetradores e vítimas.21 Neste período, a experiência das comissões de verdade na Argentina logo se estendeu à América Latina e mais tarde tornou-se popular na África do Sul.
A criação do Tribunal Criminal Internacional para a antiga Iugoslávia (ICTY) em 1993 assinalou o início de outro panorama político, a “Fase III”, na qual uma freqüência maior de conflitos fez com que a aplicação de justiça transicional e a necessidade de combater a impunidade passassem de exceção a norma. O ano de 1994 assistiu à criação do Tribunal Criminal Internacional para Ruanda (ICTR), e logo após foi promulgado o Estatuto de Roma para o Tribunal Penal Internacional (TPI). Os efeitos em cascata desses três mecanismos se fizeram sentir mundo afora, particularmente num número de acordos de paz que foram atribuídos a julgamentos e tribunais internacionais. O Acordo Arusha para o Burundi, o acordo Linas-Marcoussis para a Costa do Marfim, o acordo entre o governo de Serra Leoa e as Nações Unidas para a Corte Especial, e o Diálogo Intercongolês (ICD) para a República Democrática do Congo, todos eles exigiram a criação de mecanismos processuais internacionais ou híbridos.22 Nesta fase, há constante referência a leis humanitárias ou de direitos humanos, assim como a um “fortalecimento do modelo de Nuremberg”, particularmente pela criação do TPI como uma corte permanente para processos de genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade.23
Desenvolvimento da justiça transicional na África
Desafios
Diferentemente do que ocorreu em países como Chile e Argentina, onde as medidas de justiça transicional foram administradas após situações relativamente claras de mudança de regime, na maioria dos casos em exame na África essas medidas foram implementadas após transições negociadas, sem uma ruptura clara com os conflitos passados e/ou presentes.24 O Acordo Lomé de 1999 para Serra Leoa foi o terceiro acordo de paz feito com o objetivo de encerrar o conflito e estabelecer a democracia. De modo similar, a Comissão Nacional de Reconciliação de Gana (NRC) foi a última na sucessão de medidas de responsabilização implementadas por vários governos a partir do golpe de Estado que depôs Kwame Nkrumah em 1966. A República Democrática do Congo e Uganda vivem atualmente diferentes graus de conflito, e estão em processo de implementar várias medidas de justiça transicional.
Surgem várias questões importantes: o que constitui uma “transição” na África? Será que a transição é marcada simplesmente pela decisão política de usar a retórica da justiça e da reconciliação, mesmo num contexto de ruptura mínima com o passado, talvez a fim de “criar a possibilidade democrática de re-imaginar os caminhos e metas específicos da democratização”?25 Pode um país ter uma sucessão de transições e aplicar medidas de justiça transicional a cada nova transição?26 São essas medidas adequadas mesmo em contextos de Estados precariamente institucionalizados, sem um histórico de tradição democrática no estilo ocidental?27 Ou é possível que novos governos adotem a agora linguagem comum da justiça transicional para pleitear recursos num nível internacional? Sem oferecer respostas a tais questões, esta discussão aponta para a possibilidade de que o “momento de transição” fique mais claro na análise acadêmica do que na realidade. Isso pode aumentar a dificuldade de avaliar se o país está “maduro” para a justiça transicional. Quando as medidas são usadas em condições inadequadas, pode haver um (indesejável) aumento na probabilidade de recorrência, que pode desvalorizar as medidas.28
Não obstante essa falta de clareza a respeito de quando implementar a justiça transicional (e de saber se o Estado possui instituições adequadas para tal implementação), os Estados têm obrigação de combater a impunidade e “dar às vítimas uma reparação eficaz”.29 Os países examinados neste artigo tomaram diversas medidas de justiça transicional aparentemente para cumprir com essa obrigação, embora a impunidade continue amplamente disseminada já que a implementação dessas medidas enfrenta vários obstáculos. Embora os desafios discutidos a seguir possam não ser exclusivos dos Estados africanos, eles parecem mais acentuados, em parte devido à concorrência de fatores diversos como Estados fracos, transições nebulosas e um recurso freqüente a medidas de justiça transicional.30
Processos
Responsabilizar os perpetradores é crucial para lutar contra a impunidade. Além de atuar como um desestimulador potencial de futuros abusos, os processos podem constituir uma reparação às vítimas, reafirmar o predomínio da lei, e contribuir para a reconciliação.31 Em tese, os processos nos tribunais domésticos devem assumir a principal responsabilidade por lidar com os perpetradores, enquanto outras medidas de justiça transicional, como reparações, comissões de verdade e reformas institucionais, são destinadas a complementar esses julgamentos. Em casos de abuso amplamente disseminado dos direitos humanos, são mais importantes ainda – apesar de o judiciário estar em seu nível mais fraco – para demonstrar que a impunidade não é tolerável. Com esta finalidade, processar os maiores responsáveis e denunciar os casos que ilustram padrões de abuso pode ser importante para mostrar a gravidade dos abusos de direitos humanos, assim como sua perpetração sistemática.32
Diferentemente do que ocorreu em casos como o da Grécia, onde houve processos sistemáticos após uma transição, na África foram realizados poucos julgamentos por abusos de direitos humanos, e quando ocorreram enfrentaram muitas dificuldades, notadamente na Etiópia e no Chade.33 Com freqüência, a precariedade na capacidade legal pode ser um grande impedimento para os processos domésticos. Na República Democrática do Congo, a história do judiciário durante toda a fase pós-colonial foi marcada por uma falta de independência, integridade e infra-estrutura. A isso soma-se o agravante de que a lei congolesa não condena genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade: essas violações são encaminhadas apenas a tribunais militares, onde suas definições não se ajustam aos padrões internacionais.34 Mesmo com a recente implantação do programa de justiça criminal em Bunia, a Human Rights Watch descreveu uma situação na qual os perpetradores de graves abusos dos direitos humanos são processados por crimes menores, num contexto caracterizado por “inadequação da lei criminal existente [e] falta de recursos policiais necessários para a investigação”.35
Na Ruanda pós-genocídio foram encontrados muitos profissionais da lei mortos ou no exílio, além de um vácuo nas estruturas judiciárias. A incapacidade do tribunal de empreender processos foi (e continua sendo) agravada pelo imenso número de perpetradores. Em 2000, encomtravam-se em Ruanda mais de 125 mil pessoas detidas – um número que seria excessivo para qualquer judiciário, mesmo no mundo desenvolvido. Muitos desses indivíduos podem ter de facto cumprido penas de detenção sem jamais terem sido condenados, um problema que levanta grandes preocupações sobre o estado da justiça. Num esforço para agilizar os processos relativos a dezenas de milhares de detentos que estão aguardando julgamento, os tradicionais tribunais Gacaca foram instituídos para realizar audiências de casos de várias categorias de perpetradores, e determinar adequadamente as penas.36 No entanto, muitos padrões de justiça internacional consideram o sistema falho e mal equipado para tratar de casos de crimes internacionais de genocídio.37
Em Serra Leoa, o judiciário doméstico pós-guerra estava muito fraco e sectário. Segundo um relatório, depois da guerra civil o judiciário havia “entrado em colapso e as instituições responsáveis pela administração da justiça, tanto civil como criminal, [estavam apenas] precariamente funcionais [-] a administração de justiça fora de Freetown [era] quase inexistente”.38 O estabelecimento do Tribunal Especial para Serra Leoa foi parcialmente responsável por esta desintegração do sistema judiciário doméstico.
Em diversos Estados onde a necessária competência técnica e vontade política não existem, nota-se uma constante reivindicação por julgamentos internacionais, mesmo quando há uma clara indicação de que a possibilidade de instalar esses tribunais – de acordo com o então Secretário Geral Assistente para Assuntos Legais junto à ONU – não existe.39 Na República Democrática do Congo, o ICD decidiu requerer ao Conselho de Segurança da ONU a formação de uma Corte Criminal Internacional para a República Democrática do Congo, para examinar as atrocidades ocorridas durante o conflito que acometeu o país.40
Em Ruanda e Serra Leoa, o alcance dos tribunais internacionais também tem sido limitado devido a restrições técnicas e políticas de natureza diferente. Por exemplo, a ICTR, mesmo sendo uma louvável plataforma processual comprometida a processar o maior número possível de líderes do genocídio, indiciou apenas 80 pessoas, sentenciou 20, e inocentou 3. Com um mandato de tempo limitado, o Tribunal recentemente entrou em acordo com o governo de Ruanda para repatriar alguns sentenciados e julgá-los, em meio a muita controvérsia. Esse problema do alcance limitado dos processos internacionais também se constata no experimento de tribunal híbrido de Serra Leoa, que objetiva sentenciar os “principais responsáveis” pelo conflito e pelos abusos de direitos humanos, e indiciou 13 pessoas. Outros problemas afetam esses dois esforços, como a dificuldade de assegurar que esses tribunais tenham um impacto significativo no sistema judiciário doméstico.41
Enquanto isso, os governos da República Centro-Africana, da República Democrática do Congo e de Uganda, e o Conselho de Segurança na questão do Sudão, fizeram encaminhamentos ao Tribunal Penal Internacional, mas o Tribunal conseguiu examinar apenas crimes cometidos depois de 1 de julho de 2002, data em que o Estatuto de Roma entrou em vigor, deixando potencialmente muitas queixas sem atendimento e desapontando as vítimas.42 Além disso, as investigações do TPI podem ser afetadas por fatores como a limitação da capacidade do próprio tribunal, a segurança do país, e a possibilidade de cooperação do Estado. Outro fator que limita a jurisdição do TPI é a Lei de Proteção aos Servidores Norte-Americanos, de 2002, que proíbe a assistência militar a Estados-membros do TPI a não ser que esses Estados assinem acordos bilaterais (acordos do “Artigo 98”) com os Estados Unidos, removendo a jurisdição do TPI sobre o pessoal dos Estados Unidos presente em seus países.
Além das limitações técnicas e legais discutidas acima, também foram citados fatores culturais como motivo de alguns Estados pós-conflito procurarem evitar os processos. Em alguns casos, as preferências expressas por mecanismos de responsabilização locais não incluem processos movidos por tribunais formais.43 Em Uganda, por exemplo, os líderes Acholi não dão apoio ao cronograma das citações do TPI, temendo que a decisão de abrir processos possa remover os incentivos dos rebeldes do LRA em relação ao desarmamento.44 Em vez disso, eles querem usar medidas tradicionais para trazer a reconciliação à região devastada pelo LRA. No entanto, uma pesquisa recentemente concluída junto à população do norte de Uganda indica que as vítimas não encaram justiça e paz como mutuamente excludentes. Embora elas desejem o término da guerra, não querem que os perpetradores do LRA saiam impunes.45
Medidas de busca da verdade
Mecanismos de busca da verdade tentam satisfazer o direito das vítimas à verdade e dar à comunidade a versão mais completa possível dos fatos. Embora não seja possível processar todos os perpetradores devido aos muitos desafios identificados acima, instituições como as comissões de verdade são freqüentemente estabelecidas para ajudar a reparar esse “lapso de impunidade”.46 Além de reconhecer as vítimas como tais, as comissões de verdade podem ajudar a identificar os perpetradores, estabelecer um relato preciso dos fatos ocorridos e recomendar reparações, reforma institucional e processos. Com freqüência elas também dão à vítima uma oportunidade de acareação com os perpetradores e às vezes oferecem aos perpetradores uma oportunidade de vir a público e oferecer seu relato dos eventos, confessar suas atrocidades e, em raros casos, pedir desculpas.
A capacidade das comissões de verdade de atingirem suas metas (uma das quais freqüentemente é a reconciliação) pode se manifestar tanto no processo de busca da verdade como no relatório final. Por essa razão, as comissões devem se mostrar como morais, justas, representativas, consultivas, com credibilidade e abertas ao exame público. Isso vale para todos os aspectos do trabalho da comissão e para todos os estágios, incluindo a preparação preliminar de legislação, a escolha de membros da comissão e da equipe, e a apresentação do relatório final.47
O primeiro desafio em muitas situações pós-conflito é que os processos de busca da verdade cada vez mais são elaborados durante a negociação de paz, marginalizando a voz das vítimas e das organizações da sociedade civil, e possivelmente reduzindo a propriedade e a credibilidade.48 Na República Democrática do Congo a comissão de verdade foi proposta por membros do ICD como parte das negociações de paz.49 A instituição proposta, com todas as suas aspirações de longo alcance, nasceu de uma consulta (talvez moralmente questionável) entre a elite, da qual as vítimas não participaram amplamente, com potenciais conseqüências de excluir partes do país do processo embrionário.50
O segundo desafio é quanto à escolha dos membros da comissão, que idealmente deveriam ser pessoas muito respeitadas, de moral inatacável, escolhidas através de um processo transparente.51 Em muitos casos, no entanto, o processo envolve concessões. Para a República Democrática do Congo, a resolução do ICD declarou que os membros da comissão deveriam ser “congoleses de grande probidade moral e intelectual e que possuíssem as competências necessárias para levar adiante as atribuições da comissão”, selecionados “por consenso a partir das qualificações dos componentes de acordo com critérios estabelecidos pelo Diálogo: probidade moral, credibilidade […]”.52 Apesar dessas disposições, os membros da comissão foram nomeados por seus partidos políticos sem que fossem observados os critérios do ICD ou o consenso descrito na resolução da comissão de verdade.53 Em Serra Leoa, os membros nacionais da comissão de verdade foram vistos como simpatizantes do Partido do Povo de Serra Leoa (SLPP) no poder. Isso foi reforçado quando, contrariando a recomendação da comissão de verdade de que o presidente da república “pedisse desculpas sem reservas ao povo por todas as ações e inações de todos os governos a partir de 1961”,54 o bispo Joseph Humper apoiou a recusa do presidente em pedir desculpas. Além disso, a certa altura, o bispo agradeceu a milícia da Força de Defesa Civil (CDF), conhecida por amplos abusos dos direitos humanos, por seu trabalho na defesa do país.55 Todas essas tendências políticas podem ter levado os observadores a encarar a Comissão como parcial.
Existe uma expectativa comum de que uma comissão de verdade irá contribuir para a restauração da dignidade das vítimas. Mas esse nem sempre é o caso: dependendo de como são estruturados, os processos de busca da verdade podem ser traumáticos ou mesmo inculpar de novo as vítimas. As audiências judiciais do NRC em Gana provocaram muita discussão: as vítimas deram testemunho sob juramento, o que foi seguido por perguntas dos membros da comissão, e depois por acareação com os acusados de serem os perpetradores (quando presentes). Após esta acareação (com o acusado de ser o perpetrador ou com seu advogado), o acusado tinha a oportunidade de contar sua versão da história. Embora o processo desempenhasse um papel importante na tentativa de alcançar a verdade objetiva, alguns observadores comentaram que dar a perpetradores poderosos a oportunidade de uma acareação com as vítimas e a possibilidade de discordar de suas versões poderia não contribuir para o processo de dignificação das vítimas.56 De modo similar, o Oputa Panel da Nigéria também deu aos acusados a oportunidade de uma acareação com as vítimas.
Outro desafio com o qual se deparam as comissões de verdade – e as medidas de justiça transicional em geral – é o da ambição elevada demais, que pode levar as vítimas a se sentirem desapontadas em suas expectativas. As comissões de verdade com freqüência articulam metas grandiosas, além de seus recursos, e que às vezes não são politicamente exeqüíveis. Cada vez mais, as comissões de verdade buscam muitos objetivos diversos. Basta comparar as atribuições da comissão de verdade chilena, que buscava resolver apenas casos de desaparecimentos e assassinatos, com as atribuições da comissão de verdade da República Democrática do Congo, de decidir “o destino das vítimas de tais crimes, ouvi-las e tomar todas as medidas necessárias para compensá-las e restaurar completamente sua dignidade”.57
Relacionado com este está o fato de que, na emissão de um relatório final, a comissão de verdade cessa de existir, e com freqüência não deixa meios pelos quais se possa conhecer amplamente as aspirações contidas nas recomendações, e menos ainda que estas possam ser acompanhadas pelo governo. Tanto em Gana como em Serra Leoa, os relatórios finais, em vários volumes, não foram tornados públicos imediatamente, o que despertou preocupação. Se a população não tem acesso ao relatório e não é informada sobre tudo, é difícil para ela responsabilizar o governo em relação às recomendações feitas.58 A própria forma do relatório como documento escrito pode ser inacessível em comunidades vitimadas que tenham altos índices de analfabetismo.59 Mesmo quando o relatório é divulgado, como na África do Sul, muito poucos membros do público em geral o lêem.60
Programas de reparações61
Segundo a lei internacional, os Estados têm a obrigação de dar “pronta reparação” às vítimas de violações de direitos humanos internacionais, proporcionais aos danos sofridos.62 As reparações atendem pelo menos a três objetivos: reconhecer as vítimas como cidadãos detentores de direitos específicos, comunicar uma mensagem de que a violação desses direitos merece uma ação por parte do Estado; contribuir para estabelecer confiança cívica entre os cidadãos e entre estes e as instituições do Estado; e construir solidariedade social à medida que a sociedade demonstra empatia com as vítimas.63
É importante destacar que as reparações nunca são capazes de trazer as vítimas totalmente de volta ao status quo ante, e são apenas parte de um pacote de medidas de justiça transicional que podem incluir reformas institucionais, processos e busca da verdade. Na ausência de uma abordagem integrada como esta, observadores têm destacado que as reparações podem muitas vezes ser vistas como uma tentativa de comprar a aquiescência (se não forem acompanhadas por processos) ou como gestos inadequados de pouca conseqüência a longo prazo (se não forem acompanhadas de uma reforma institucional).64
As reparações com freqüência se deparam com falta de recursos, e não é possível contar com os patrocinadores internacionais para fazer os pagamentos.65 Na África do Sul, o Comitê para Reparações e Reabilitações (CRR) fixou pagamentos provisórios para as vítimas com “urgentes necessidades médicas, emocionais, educacionais e materiais/ou simbólicas”, além das reparações finais. Há muitos desafios associados a reparações provisórias. Por exemplo, elas foram pagas com muito atraso, quase dois anos após as recomendações CRR terem sido enviadas ao governo. Elas também eram praticamente desprezíveis em termos quantitativos, removiam o poder das vítimas, e constituíram uma freqüente fonte de atritos e tensões na comunidade, especialmente entre quem as recebeu e quem não as recebeu.66 Após uma longa espera, as reparações finais acabaram sendo alocadas em quantias significativamente mais baixas do que as recomendadas pela CRR, com o governo fazendo um pagamento numa só parcela de aproximadamente $5.000 dólares em vez de uma série de pagamentos ao longo de seis anos.67
O TRC de Serra Leoa recomendou reparações para amputados, feridos, mulheres que sofreram abuso sexual, crianças e viúvas de guerra, porque essas vítimas sofreram múltiplas violações e foram consideradas em “urgente necessidade de um tipo particular de assistência para satisfazer suas necessidades presentes, mesmo que isso servisse apenas para colocá-las em pé de igualdade com uma categoria maior de víti