· Revista Conectas – Assuntos

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Introdução

O termo usado normalmente no Brasil para referir-se a este tema é “segurança pública”, em lugar de “segurança cidadã”, mais comum em outros países da região. De fato, a noção de “segurança cidadã” no Brasil está associada a um paradigma particular, mais democrático e comunitário, vinculado à noção de cidadania.

O Brasil, como muitos outros países da região, vive um cenário de crise na segurança pública, com altas taxas de incidência criminal, que cresceram de forma significativa ao longo dos anos 80 e 90. Até os anos 70, o crime era concebido basicamente como um problema de polícia; a esquerda esperava, como em outros países, que o fim da ditadura e a democratização, de alguma forma resolveriam a questão. O tema da criminalidade era concebido como um tema “da direita”, dos defensores da lei e da ordem, e qualquer ênfase na questão já era vista como suspeita. Em conseqüência, não existia sequer a reflexão, nem a proposta dos setores progressistas que se contrapusesse à simples demanda pela ordem por parte dos grupos conservadores.

No entanto, o notável avanço da criminalidade trouxe o tema da segurança pública para a agenda política e social, da qual não sairia nunca mais. O fracasso das políticas tradicionais no controle da criminalidade e da violência abriu espaço para reformas e propostas inovadoras. Inclusive, algumas vozes se levantaram pedindo uma mudança completa de paradigma na segurança pública. A idéia de uma segurança pública mais democrática, com maior atenção à prevenção, o surgimento de novos atores, a noção de polícia comunitária ou, simplesmente, de uma polícia que compatibilizasse eficiência com respeito aos direitos humanos são sintomas do novo período de debate e efervescência.

No Brasil, a segurança pública é fundamentalmente da competência dos estados. Cada um deles tem, por exemplo, suas forças policiais – Polícia Civil e Polícia Militar – e seu Tribunal de Justiça, conforme o modelo federativo. A Polícia Federal, por seu lado, tem porte reduzido – inferior ao de muitas polícias estaduais – e o sistema de justiça criminal federal tem competências limitadas a determinados crimes. Por isso, o papel do poder federal foi, sobretudo incentivar, por meio de financiamentos, intervenções nos estados, que atendam certos requisitos técnicos e políticos.

As prefeituras, por seu lado, têm um papel na área da prevenção, principalmente, embora a expansão das guardas municipais inclua também tarefas de repressão.

A percepção dos cidadãos da crescente insegurança provocou, ao longo dos últimos anos, uma pressão social para que todas as autoridades tomassem medidas no campo da segurança pública, independentemente de suas competências oficiais. Todavia, a difícil situação financeira dos estados impede investimentos significativos, o que tem contribuído para o aumento dos poderes municipal e federal neste campo.

Políticas federais

Entre os órgãos com que conta o governo federal nesta área, destaca-se a Polícia Federal, com competências de vigilância nas fronteiras e alfândegas e nos crimes federais. Seu efetivo, de apenas alguns milhares de homens em todo o país, impede o cumprimento eficiente de todas as suas funções.

A Secretaria Nacional Anti-Drogas, vinculada à Presidência da República, tradicionalmente dirigida por militares,1  tem atribuições na área de prevenção, que se confundem com as de outros órgãos governamentais.

Dois elementos contribuíram historicamente para limitar o papel federal neste campo. O primeiro foi o temor de provocar suspeita nos governos estaduais sobre uma atitude intervencionista do governo federal que contrariasse o pacto federativo, justamente numa área tão delicada. O segundo foi o receio dos governos federais de se envolverem profundamente em um tema complexo, pois um fracasso poderia ter altos custos políticos.

No entanto, como já foi mencionado, a crise da segurança pública provocou uma demanda social exigindo que os poderes públicos interviessem de maneira mais ativa. No ano 2000, pouco depois do famoso incidente com o ônibus 174 no Rio de Janeiro,2  o governo Fernando Henrique Cardoso lançou o Plano Nacional de Segurança Pública. A coincidência de datas não é casual, reflete a tendência dos poderes públicos de formular respostas imediatas a episódios de crises na segurança pública, em vez de optar por uma abordagem planejada em função de indicadores e dados globais.

O Plano Nacional continha uma série de 15 compromissos e 124 ações concretas com as quais o governo federal se comprometia a intervir contra a violência, particularmente a violência urbana. Algumas ações eram exclusivas do poder federal e outras deveriam ser executadas em conjunto com as autoridades estaduais e municipais. Para os críticos, o Plano simplesmente reclassificava muitas ações que já estavam sendo realizadas ou em fase de projeto, vinculando-as nesse momento à área de segurança.

Uma das principais iniciativas foi a criação de um Fundo Nacional de Segurança Pública, com a finalidade de financiar projetos de estados e municípios que cumprissem determinados requisitos – eficiência, transparência, respeito aos direitos humanos – e que o governo federal julgasse prioritários. A idéia que começava a tomar forma era a de que o governo federal poderia induzir políticas públicas reformistas nos estados, através do financiamento seletivo, sem ferir suscetibilidades. A Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP) do Ministério de Justiça, órgão com uma atuação anteriormente discreta, foi reorganizada e fortalecida para acompanhar e implementar essas novas tarefas.

Uma das 124 ações do Plano Nacional era o Plano de Integração e Acompanhamento de Programas Sociais de Prevenção à Violência Urbana (PIAPS), criado de fato em 2001, e vinculado ao Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República. Uma de suas particularidades era não contar com recursos próprios, funcionando como agente articulador de iniciativas de vários ministérios, com competências para prevenir a violência. Dessa forma, constituía um programa intersectorial que pretendia coordenar e maximizar os resultados de várias agências governamentais. Ao mesmo tempo, se propunha a cooperar com os três níveis do poder público – federal, estadual e municipal – e fomentar redes locais. Seu foco principal eram as crianças e os jovens entre zero e vinte e quatro anos.

Em seu primeiro ano, 2001, o PIAPS deu prioridade às regiões metropolitanas de São Paulo, Rio de Janeiro, Vitória e Recife, justamente as que apresentavam maior incidência de violência letal no país. No ano seguinte, foram incorporadas as regiões de Cuiabá, Fortaleza e o Distrito Federal. O programa tentou articular projetos de 16 setores do governo federal, entre ministérios e secretarias, todos com o paradigma da prevenção, por meio da melhoria das condições de vida, o respeito às pessoas e o acesso aos direitos da cidadania. As iniciativas se caracterizavam, em teoria, por sua coordenação com os agentes locais, tanto diretamente com os municípios, ou com as organizações não governamentais e da sociedade civil. O objetivo era estabelecer convênios formais entre o governo central e os governos municipais e estaduais. Os projetos a serem financiados eram escolhidos pelos técnicos do poder federal. No entanto, a concepção e execução dos projetos era de responsabilidade das agências proponentes – municipais ou não governamentais –, que não precisavam seguir critérios técnicos pré-determinados.

A partir de janeiro de 2003, o novo governo abandonou o PIAPS em troca de outros programas na área da segurança.

Quando candidato, o presidente Lula elaborou um Plano Nacional de Segurança Pública e deu visibilidade ao tema durante a campanha eleitoral. Depois da eleição, o governo Lula criou o chamado Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), que pretendia articular operacionalmente as intervenções dos estados da federação, incluindo suas respectivas polícias, em cada região do país. Depois de sucessivas crises políticas, o SUSP deixou de receber apoio político e grande parte do plano ficou no papel.

A própria Secretaria Nacional não conseguiu, desde sua criação, corresponder às expectativas geradas. A falta de critérios políticos rígidos em relação aos programas estaduais financiados e os sucessivos cortes de orçamento enfraqueceram consideravelmente seu papel de indutor de políticas nos estados, que deveria ter sido executado através do Fundo. Este ano, por exemplo, o orçamento inicial de aproximadamente US$ 180 milhões, já tão reduzido para as dimensões do país e da tarefa proposta, sofreu dois cortes e chegou a pouco mais de um quarto do orçamento original.

A Polícia Federal dedicou os últimos anos a operações bem planejadas e difundidas para desarticular núcleos do crime organizado de alto nível em vários estados. Um de seus principais êxitos foi a investigação de vários casos de corrupção por membros da própria polícia, o que lhe conferiu uma imagem de polícia menos corrupta que as estaduais. No entanto, os recentes escândalos na Superintendência do Rio de Janeiro ofuscaram essa imagem. A Polícia Federal foi acusada de alguns excessos e, sobretudo, de buscar publicidade durante as ações contra o crime organizado.

O controle de armas foi uma área na qual o poder federal conseguiu avançar, tanto pela adoção da lei de armas de 1997, que transformou em crime o porte ilegal, antes uma mera contravenção, quanto pela promulgação do “Estatuto do Desarmamento” em 2003.

Políticas estaduais

São os estados os atores principais na área de segurança pública. Cada estado conta com uma Polícia Militar, uma força uniformizada, cuja tarefa é o patrulhamento ostensivo e a manutenção da ordem, e com uma Polícia Civil, que tem como missão, investigar os crimes cometidos. Dessa forma, nenhuma das duas polícias executa o chamado “ciclo completo” de segurança pública, que vai da prevenção à repressão, o que suscita problemas de duplicidade e rivalidade entre ambas.

Em geral, as políticas estaduais de segurança – se é que podem receber este nome sem planejamento, objetivos e avaliação – são basicamente reativas e baseadas na repressão, mais do que na prevenção. Com freqüência, os governos reagem diante dos casos com repercussão pública, particularmente os que se destacam na imprensa, para dar uma resposta de curto prazo. Quando o caso perde visibilidade, as medidas iniciais se desvanecem. A imprensa, neste sentido, desfruta de um grande poder para orientar as medidas dos órgãos públicos. As intervenções raramente são planejadas com base em objetivos específicos.

Entre as deficiências mais comuns na área de segurança pública, podemos destacar:

• falta de investimento suficiente, o que se traduz, entre outras coisas, por baixos salários para os escalões inferiores das polícias. Esses salários obrigam os agentes a trabalharem em outros empregos, geralmente em segurança privada, gerando altos níveis de estresse e a tendência de privatização da segurança pública;

• formação deficiente dos agentes policiais, sobretudo nos níveis hierárquicos inferiores;

• herança autoritária: a polícia era um órgão de proteção do Estado e das elites que o dirigiam contra os cidadãos que representavam um perigo para o status quo, as chamadas “classes perigosas”. A transição do modelo de uma polícia de controle do cidadão para uma polícia de proteção das pessoas é gradual e ainda não foi concluída. Ademais disso, o Estado brasileiro conserva resquícios de sua formação oligárquica, como a prisão especial para as pessoas com formação universitária;

• insistência no modelo da guerra como metáfora e como referência para as operações de segurança pública. Desse modo, o objetivo continua sendo, em muitos casos, o aniquilamento do “inimigo”, freqüentemente sem reparar nos custos sociais. O problema de segurança pública aparece às vezes como uma questão de calibre, como um nó que será desatado quando o poder de fogo das polícias supere o do inimigo. Em conseqüência, a segurança pública se apresenta fortemente militarizada em suas estruturas, doutrinas, formação, estratégia e táticas. As operações de segurança pública em áreas pobres se assemelham a operações de guerra em território inimigo: ocupação, blitz etc.;

• no contexto anteriormente mencionado não é de se estranhar a existência de numerosos abusos aos direitos humanos, particularmente os que se referem ao uso da força. Os tiroteios em comunidades pobres produzem um alto índice de mortes, incluindo as vítimas acidentais. As alegações de tortura contra presos e condenados também são freqüentes;

• relações conflitivas com as comunidades pobres, sobretudo em lugares onde o crime organizado é forte. A juventude que vive nesses lugares considera a polícia inimiga e um setor da polícia tem esta mesma visão. As pesquisas mostram que existem muitas comunidades onde os moradores têm mais medo da polícia que dos traficantes de drogas, cujo despotismo é mais previsível;

• numerosos casos de corrupção policial, desde pequenos subornos para não aplicar multas de trânsito até proteção a traficantes. Em muitas ocasiões, o abuso de força está também vinculado aos casos de corrupção (vide o estudo de Mingardi3  sobre a Polícia Civil de São Paulo e o caso recente do massacre da Baixada4  Fluminense em março de 2005).

Não obstante este quadro de deficiências, nos últimos anos se pôde observar iniciativas de reformas modernizadoras. Elas constituem ainda exceções à regra geral, mas representam a possibilidade de uma fut