O estado atual da ordem legal internacional
Desde que surgiu na mente das elites européias – há aproximadamente quatro séculos – até a última metade do Século XX, o direito internacional foi considerado um facilitador, uma vez que expressava os termos de coexistência entre comunidades politicamente organizadas, que não reconheciam qualquer autoridade superior.1 Gradativamente, o Direito Internacional emergiu da derrota das ambições imperiais dos Habsburgos e das reivindicações papais para reger as vidas espirituais e morais de todos os povos da cristandade. Em processo análogo ao desenvolvimento aluvial da ordem entre habitantes indígenas, de aldeias remotas sem instituições políticas formais, líderes das comunidades européias — independentes de facto uns dos outros, mas estreitamente relacionados cultural, histórica e valorativamente para se considerarem de espécies diferentes — desenvolveram inevitavelmente um entendimento comum da natureza de suas relações e o caminho certo para lidar com casos de sobreposição dos direitos de soberania ou de incerteza no locus ou nos indícios de soberania.
De um modo geral, os governantes podiam viver como proprietários de terra, com liberdade para fazer o que bem entendessem em suas respectivas propriedades. A Carta das Nações Unidas levou a lógica da igualdade de direitos e deveres ainda mais longe ao proibir o uso da força para privar os Estados de seus territórios e ao consolidar as atividades de elaboração e cumprimento das leis e de tomada de decisões autônomas contíguas à idéia de um Estado soberano.2
Ao longo de toda a Guerra Fria, essa proibição da Carta dominou o discurso sobre as obrigações dos Estados. Entretanto, durante o período de aproximadamente quatro décadas e meia – decorrido entre a fundação das Nações Unidas e o fim declarado da guerra – os Estados Unidos, por meio de forças regulares ou por “procuradores”, invadiram a Guatemala, Cuba, República Dominicana, Granada e Panamá; enquanto a União Soviética fez o mesmo na Hungria, Tchecoslováquia e Afeganistão. Além disso, ambos ignoraram os ostensivos direitos de soberania de outros Estados – a fim de manipular sua política interna – 3 ao adotarem uma série de meios ilícitos menos chamativos que a invasão. Quanto à desconsideração às restrições da Carta sobre a intervenção de um modo geral e o uso da força em particular, as superpotências, obviamente, não estavam sozinhas. A França, por exemplo, formou e desfez governos na África Ocidental de modo discricionário.
Algumas dessas delinqüências prima facie foram condenadas por grande parte dos acadêmicos do direito internacional e por extensas maiorias na Assembléia Geral das Nações Unidas e/ou organizações de tratados regionais,4 aparentemente determinados a manter, com raríssimas exceções, a posição de que os únicos usos legítimos da força nos termos da Carta referem-se à legítima defesa contra um ataque armado real ou iminente ou quando autorizado pelo Conselho de Segurança.5 No que se refere à antiquada agressão para o saque, a resposta final à invasão do Iraque no Kuwait em 1991 foi uma prova de força contínua do apoio coletivo à integridade das fronteiras na esteira dos acontecimentos da Guerra Fria. Entretanto, embora as Nações Unidas tenham aparentemente reafirmado as prerrogativas à soberania há tempos reconhecidas ao autorizarem a operação “Tempestade no Deserto”, acabaram de certa forma atenuando-as ao aprovarem a intervenção em países basicamente para proteger suas populações contra assassinatos e sofrimento, resultantes da queda da autoridade pública (Somália e Haiti 2) ou de abuso associado a terríveis conflitos civis (Serra Leoa e Libéria) ou de abuso após golpes de Estado (Haiti 1) ou de um conflito civil mortífero agravado por intervenção externa (Bósnia). A invasão não-autorizada do Iraque no ano passado, não tão distante da intervenção humanitária da OTAN na Sérvia referente à questão de Kosovo e considerada à luz de vários atos de delinqüência das superpotências durante a Guerra Fria e as diversas intervenções da França nos Estados supostamente independentes da África Ocidental, levaram alguns comentaristas a concluir que o direito internacional perdeu, ainda que temporariamente, a capacidade de atuar com o balizamento fundamental das relações internacionais.6 Tal questão deve ser investigada mais a fundo. É possível que sua incapacidade de conduzir a política externa americana esteja bem além dos padrões tradicionais.
Um sistema legal legítimo é muito mais do que um arquipélago de regimes funcionais. Por mais que uma mescla de regras e princípios, por vezes inseridos em instituições burocráticas formais possa, aparentemente, estabilizar o comportamento e as expectativas referentes a uma ampla gama de assuntos tão diversos quanto o uso dos mares e a proteção do mico-leão7, jamais consistirá em uma ordem legal a menos que vistas como instâncias de um sistema geral de autoridade que se aplique, com eficácia razoável, a todos os Estados e aborde questões existenciais de comunidades humanas que incluam, entre outras, a questão de quem pode fazer uso da força e em que circunstâncias. O sistema também deve conter uma regra amplamente aceita para identificar outras de natureza legal, no sentido de contarem com um respeito maior que todas as demais normas sociais, o que H. L. A Hart8 denominou “a regra do reconhecimento”.
O consenso entre as autoridades de Estado, seja declaradamente, em texto formal, ou por prática sistemática, permanece como a regra do reconhecimento do sistema internacional. Não vejo sinais de mudanças drásticas neste sentido, e sim um movimento gradativo em direção ao que poderia ser chamado de formulação e interpretação de leis por um “consenso suficiente”. Em nenhum lugar isto é mais evidente do que na área dos direitos humanos. Vinte e cinco anos atrás, quando seu comportamento relativo aos direitos humanos era posto em dúvida, um número significativo de países – inclusive potências como a República Popular da China — ainda invocava enfaticamente uma suposta imunidade soberana ao julgamento externo de práticas internas. Hoje em dia tal defesa é rara, senão inexistente.9 Os governos deixaram de invocar a defesa da soberania quando esta deixou de ter ressonância perante seus pares. De fato, admitiram que a norma da soberania havia se diluído, apesar de suas objeções.
Não quero exagerar este ponto. Os baluartes da soberania à moda antiga ainda se encontram extremamente fortalecidos. Ainda no ano passado, um grupo representativo dos membros da ONU impediu a aprovação de uma idéia, apoiada pelo Canadá e por outros defensores da intervenção humanitária, de que a soberania de um Estado depende do cumprimento de seu dever de proteger a segurança de seu povo.10 A tensão entre o valor anteriormente dominante de segurança do Estado e a necessidade cada vez maior de enfatizar a segurança humana (sendo a segurança do Estado uma pré-condição para tal fim)11 permanece forte e separa não apenas Estados democráticos ricos de muitos (na melhor das hipóteses) Estados semi-democráticos, menos desenvolvidos, mas também as elites de muitos Estados, inclusive os democráticos. Diante da incapacidade dos Estados Unidos de garantir uma maioria mínima de votos do Conselho de Segurança para sua proposta de mudança de regime no Iraque, país com um regime reconhecidamente monstruoso, ainda se pode sentir o apego das elites governantes às prerrogativas enfraquecidas da soberania do Estado.
O recuo do internacionalismo americano
Se é verdade (segundo o escritor neo-conservador Robert Kagan12) que os europeus (principalmente os alemães) personificam hoje a crença na solução legal de conflitos interestaduais por meios pacíficos, ao passo que os americanos vêem na força o árbitro inevitável, somos então testemunhas de algo próximo à inversão de papéis históricos. Durante a Conferência de Haia de 1898, convocada pelo czar russo para promover a paz mundial, o principal representante dos EUA se referiu à guerra como “um anacronismo, algo como o duelo ou a escravidão, simplesmente superado pela sociedade internacional”, e propôs um acordo estabelecendo uma arbitragem obrigatória nos casos de disputas interestaduais que não pudessem ser solucionadas diplomaticamente.13 Embora os EUA admitissem exceções para qualquer “diferença” “cujo caráter instigasse ou justificasse a guerra”, a delegação alemã rejeitou a proposta, argumentando que “qualquer tratado para limitar o uso de armas e fornecer uma arbitragem “neutra” de controvérsias acabaria por eliminar a vantagem estratégica mais importante [da Alemanha]: sua capacidade de mobilizar e atacar com mais rapidez e eficácia que qualquer outra nação”.14 De qualquer forma, argumentaram os alemães, a guerra (assim como seus fins e seus meios) é uma prerrogativa de soberania não sujeita ao julgamento de terceiros, visão não totalmente diferente da hostilidade violenta dos conservadores americanos à idéia de que uma guerra planejada pelos EUA possa ser sujeita a julgamento pelo novo Tribunal Criminal Internacional.15 Na realidade, no que tange aos fins, essa posição acaba repercutindo no ponto de vista de alguns acadêmicos respeitáveis contemporâneos.16
Naturalmente, a diferença entre a retórica americana, encharcada de legalismos, e as razões de Estado dos alemães acabou se atenuando quando as elites de ambos os Estados foram além das relações entre aquilo que o advogado-estadista americano Joseph Choate definiu como “as grandes nações do mundo”17 e dedicaram-se àquilo que o historiador americano John Fiske18 denominou de “raças bárbaras”.19 Na mesma linha, o influente intelectual da virada do século XX, Heinrich von Treitschke, referiu-se ao direito internacional como um mero conjunto de “frases, caso suas normas também se apliquem aos povos bárbaros”. “Para punir uma tribo de negros”, afirmou,“deve-se queimar as aldeias pois, se não dermos exemplos como esse, não haverá nada a conquistar. Se o Reich alemão aplicasse o direito internacional nesses casos, não seria um caso de humanidade ou justiça, mas sim de vergonha e fraqueza”.20
Não quero chamar atenção aqui para o paralelo entre a insistência alemã frente às prerrogativas da soberania (e a conseqüente legitimidade da força como instrumento governamental) e as reivindicações dos direitistas que hoje governam os Estados Unidos. Para começar, von Treitschke era contrário à idéia de limites legais, tanto para os meios quanto para os fins da guerra. Em contraste total, o governo Bush, ao realizar guerras (primeiro contra o Afeganistão e depois contra o Iraque) comemorou, na maior parte do tempo, sua rigorosa conformidade com as leis da guerra, chegando a ponto de proclamar uma nova era histórica na qual a tecnologia possibilitaria alvejar os governantes do mal, e não as sociedades por eles dominadas. Além disso, o governo tentou, em parte, justificar seu recurso à força com interpretações de regras legais e éticas amplamente reconhecidas, e não com reivindicações sobre as prerrogativas da soberania, não passíveis de revisão.21
A invocação do direito de legítima defesa, reconhecido pela Carta das Nações Unidas, contra um ataque armado de um governo de fato (o Talibã do Afeganistão), que fornece um porto seguro a uma organização terrorista bem organizada, que atacou várias vezes alvos americanos, provocou mais mortes que Pearl Harbor (quando o ataque dos japoneses justificou a entrada dos EUA na Segunda Guerra Mundial). Essa invocação do direito de legítima defesa, que ameaça ataques contínuos, não seria, de um lado, uma extensão duvidosa da norma aplicável. Afinal, os Estados da OTAN, inclusive os menores países europeus que costumam ser os grandes defensores da Carta e do Estado de Direito em questões internacionais, consideraram os atentados terroristas de 11 de setembro em Nova York e Washington atos de guerra,22 assim como o próprio Conselho de Segurança, ao adotar uma resolução que reconhece a aplicabilidade do direito de legítima defesa nas circunstâncias geradas pelos atentados.23
De outro lado, o Iraque pode ter sido uma extensão,– argumentam os defensores do governo Bush – porém uma extensão não mais significativa que a promovida pela OTAN, ao bombear e colocar a Sérvia em submissão a Kosovo, ação considerada tecnicamente ilegal mas, ainda assim, ´´legítima´´ pela Comissão Internacional Independente de Kosovo, composta por progressistas cosmopolitas comprometidos com a minimização da força nas relações internacionais e com o reforço do direito e das instituições internacionais.24 No caso de Kosovo, o recurso à força foi analisado e finalmente aprovado por uma organização multilateral de democracias (OTAN) em resposta à ameaça de um crime contra a humanidade (limpeza étnica de massa), prestes a ser cometido por um regime recentemente envolvido em crimes semelhantes e em crimes de agressão (contra a Bósnia). No Iraque, os EUA — apoiados por um Membro Permanente do Conselho de Segurança e por uma mescla de mais ou menos trinta Estados — agiram no sentido de colocar em vigor as resoluções do Conselho de Segurança nos termos do Capítulo VII após várias apurações realizadas pelo Conselho de Segurança25 de violação relevante do acordo de cessar-fogo de 1991 pelo governo de Saddam Hussein, agressor reincidente (Kuwait em 1991, após o Irã em 1982). Além disso, na década anterior o Conselho havia consentido ou aprovado ações militares mais restritas dos EUA e do Reino Unido contra o Iraque, no caso de violação das condições do acordo de cessar-fogo de 1991, e para defender curdos e xiitas contra uma nova onda de violações brutais aos direitos humanos que, no primeiro caso, beiravam ao genocídio.26
Entretanto, o Iraque parece uma extensão meramente modesta apenas quando isolado dos atos e alegações que marcaram a política externa americana com a chegada do Governo Bush em janeiro de 2001. Ao ser analisado no contexto da Estratégia de Segurança Nacional emitida pela Casa Branca em 200227 e de outras declarações da Administração Bush,28 a invasão do Iraque assemelha-se muito mais a um desafio revolucionário ao sistema da Carta — e não apenas à sua restrição ao uso da força — uma vez que a Carta e as próprias Nações Unidas são apenas peças de uma estrutura maior, contida na primeira onda de reconstrução de instituições internacionais após a Segunda Guerra Mundial.
Os criadores das Nações Unidas, as instituições financeiras internacionais e o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT) foram todos movidos pela crença de que o sistema de equilíbrio do poder marcado pelo compromisso das elites nacionais com o acúmulo e a exploração sempre competitiva do poder seria arriscado demais para persistir no futuro e incompatível com a demanda crescente de Estados voltados ao bem-estar, e não à guerra.29 Um sistema internacional de livre comércio, facilitado por moedas estáveis (o acordo do FMI) e a regra das nações mais favorecidas (GATT), disponibilizaria recursos naturais a todos os países, removendo assim um dos incentivos clássicos à agressão e fomentando a interdependência. Estas instituições políticas e econômicas foram os primeiros elementos de um sistema governativo da sociedade e economia globais que, esperançosamente, substituiria o sistema bélico mundial que, de 1914 a 1945, provocara matanças em escala planetária. Fora do Bloco Comunista, o sistema de comércio previsto e sua respectiva ordem financeira ganharam ímpeto, sendo então impulsionados por mudanças sísmicas nas tecnologias de informação, comunicações e transporte e, assim, sessenta anos após a Segunda Guerra Mundial, temos de fato o mundo interconectado vagamente imaginado pelos arquitetos de 1945. Temos aquilo que chamamos vagamente de “globalização”, embora esta resulte, em grande parte, da ação do setor privado, sem o desenvolvimento equivalente de instituições de administração pública, principalmente na esfera de relações políticas/militares, onde a Guerra Fria paralisou fortemente o Conselho de Segurança e restringiu a cooperação devido a um conflito catastrófico entre as superpotências.
O colapso do poder soviético em 1991 coincidiu, a grosso modo, com uma nova fase de vivacidade econômica e psicológica nos Estados Unidos para produzir um ambiente internacional semelhante ao que predominava em 1945, porém com diferenças cujos efeitos potenciais não ficaram claros logo de início. A semelhança consistia no alvorecer amplamente sentido, pelo menos nas sociedades politicamente organizadas do ocidente, de uma nova era com vasto potencial de cooperação entre os Estados líderes para aliviar a condição humana.30
A primeira diferença foi a natureza absolutamente inigualável do poder militar americano. O fator de equilíbrio soviético desaparecera, sem nenhum Estado ou coalizão de Estados no horizonte para substituí-lo. Pela primeira vez na história da humanidade, um país podia levar uma força convencional militarmente decisiva a qualquer canto do globo em poucas semanas, ou até mesmo dias, se fosse o caso. Tanto os entusiastas quanto críticos da pré-eminência americana começaram a se referir à “Mundo Unipolar” onipresente.31 A segunda diferença foi a realidade de uma interdependência e integração provavelmente jamais vislumbradas pelos arquitetos das instituições pós-Segunda Guerra Mundial. Não era apenas uma questão de comércio e fluxo de investimentos, mas sim de redes de produtos e serviços de integração transnacional e de sistemas de comunicação e de energia vulneráveis que culminaram nessa integração.
A terceira diferença entre as condições predominantes em 1945 e 1991 foi o efeito cumulativo da integração do mercado e da revolução dos transportes e comunicações na cultura tradicional e na conscientização política na periferia global, acompanhados de uma aceleração extraordinária no crescimento populacional. A explosão demográfica gerou um enorme desemprego na população rural; a revolução das comunicações e transportes deu a esses indivíduos a motivação e as condições necessárias para tentar a sorte na cidade, longe de suas fontes tradicionais de autoridade moral e da rotina segura da vida familiar no campo, onde formaram pólos socialmente combustíveis, principalmente nas sociedades mal-governadas da África e do Leste Asiático. Devido à abertura das fronteiras e à facilidade de movimentação, esses pólos têm atravessado as fronteiras entre o Ocidente e as demais regiões. Desses pólos, líderes movidos não pela pobreza, mas pelo desafio que uma cultura consumista e libertária impõe ao sentido de identidade e autoridade, e pelo sentimento de humilhação com a fraqueza política/militar de suas sociedades face ao poder cultural e militar do Ocidente, podem recrutar soldados para guerrilhas contra o Estados Unidos, seus aliados e colaboradores.
Considerando estas características tão marcantes do mundo pós-Guerra Fria em 1991, poderíamos razoavelmente ter recorrido aos líderes americanos para obter deles uma explosão de criatividade institucional e normativa semelhante a que tiveram após a Segunda Guerra Mundial. Se por um lado os Estados Unidos dispunham de um poder militar relativo muito mais forte e de um alcance econômico e cultural bem maior do que sessenta anos atrás, por outro lado enfrentavam uma série de ameaças interligadas à sua segurança nacional a longo-prazo e ao bem-estar de seu povo, comparável à ameaça imposta pelo poder soviético e pela ideologia marxista. No entanto, tais ameaças careciam de algo naquele momento, principalmente de um nome, de um rosto e um endereço que pudessem enquadrá-las nos moldes maniqueístas da cultura popular americana.
Nos anos que se seguiram à dissolução da União Soviética, Washington fez de fato insinuações retóricas de novas ambições para a ordem internacional, basicamente em termos de um compromisso com a disseminaçã