Introdução
Nove países ilhéus compõem a Commonwealth no Pacífico – Fiji, Kiribati, Nauru, Papua Nova Guiné, Samoa, Ilhas Salomão, Tonga, Tuvalu e Vanuatu. Na região, as questões relativas ao policiamento e, notavelmente, à reforma da polícia são prioridades-chave dos governos, além de preocupações no âmbito dos direitos humanos. O policiamento é uma função central e vital do Estado, que assume o dever de assegurar um clima de segurança e proteção. O policiamento nesta região particular tem de superar obstáculos como as grandes distâncias geográficas dentro dos países, com freqüência espalhados por várias ilhas, suas sociedades heterogêneas, os crimes violentos e as crises políticas esporádicas. A polícia precisa estar equipada para enfrentar essa miríade de desafios e dar sustentação à democracia e aos direitos humanos.
O único policiamento legítimo é aquele que ajuda a criar um ambiente livre do medo e que conduza ao respeito pelos direitos humanos, particularmente daquelas pessoas que promovem atividades políticas, uma vez que a liberdade política é a marca da democracia. Infelizmente, as histórias pós-independência de muitos países do Pacífico demonstram que a polícia nem sempre é imparcial e respeitadora dos direitos humanos. Órgãos policiais em vários desses países têm desempenhado um papel central em violentos Golpes de Estado, no prolongamento de conflitos internos e na supressão da democracia. Essas experiências têm levado a amplas iniciativas de reforma da polícia na Commonwealth no Pacífico, algumas delas lideradas por agências patrocinadoras internacionais e outras por governos nacionais. Desse modo, a região oferece não apenas exemplos de problemas de policiamento, mas também idéias sobre a reforma da polícia.
Nações democráticas precisam de policiamento democrático. As iniciativas de reforma da polícia adotadas ao longo do Pacífico são tremendamente encorajadoras e definem um precedente muitíssimo importante para o fortalecimento do governo e da democracia na região. Todavia, defender reformas da polícia sustentáveis requer que se passe de um policiamento ligado ao “regime” a um policiamento “democrático”. O policiamento ligado ao regime, implantado como ferramenta do domínio colonial em muitos países da Commonwealth, caracteriza-se pelo fato de a polícia responder predominantemente ao regime no poder e não ao povo, de controlar mais do que proteger as pessoas, e de, como regra, permanecer fora da comunidade. Em contraste, o policiamento democrático baseia-se numa abordagem alicerçada em princípios de responsabilização, transparência, participação, respeito pela diversidade e defesa dos direitos individuais e de grupo. O policiamento democrático não só protege instituições democráticas e dá apoio a um ambiente onde os direitos e atividades democráticos podem florescer, mas também incorpora valores democráticos em seus próprios processos e estruturas institucionais. As iniciativas de reforma da polícia em andamento no Pacífico estão, de certo modo, democratizando a polícia a partir de dentro. Contudo, talvez seja necessário um impulso maior para estabelecer a proteção dos direitos democráticos e humanos como uma prática central do policiamento.
Este artigo procura meios de fortalecer o policiamento democrático nos países da Commonwealth no Pacífico, na medida em que enfoca a responsabilização da polícia em particular. Serão ainda destacadas as estruturas legais, e os processos e mecanismos institucionais já existentes para reconhecer a responsabilidade da polícia – um elemento-chave do policiamento democrático. Com a informação disponível e a análise desenvolvida, este artigo descreve, por fim, em que medida o policiamento democrático está arraigado nos países da região e, também, propõe estratégias para melhor consolidar o policiamento democrático.
Problemas do policiamento
Os desafios para alicerçar o policiamento democrático na região são complexos e consideráveis. Muitos dos países da Commonwealth no Pacífico estão lidando com crime e violência crônicos, alimentados pela ampla circulação de pequenas armas ilegais. Muitos, ainda, tiveram turbulentas histórias políticas pós-independência. Vejamos um panorama superficial: Fiji experimentou três golpes de Estado desde o fim da década de 1980; o governo das Ilhas Salomão foi derrubado em 2000 por uma polícia para-militar que atuou junto com grupos armados; crimes violentos e um governo precário endêmico afligem Papua Nova Guiné; a estabilidade da democracia em Vanuatu vê-se repetidamente afetada por alianças políticas cambiantes; e a democracia ainda precisa criar raízes em Tonga. Por toda a região, o governo e as instituições de controle são fracos, enquanto o setor de segurança tende a ser poderoso e altamente militarizado, o que resulta em democracias frágeis, propensas a crises. De modo alarmante, durante os períodos mais turbulentos nas Ilhas Fiji e Salomão, os civis foram em larga medida abandonados e deixados à própria sorte, padecendo constantemente da ausência de qualquer coisa que se assemelhasse a uma proteção policial. Nas Ilhas Salomão em particular, após o golpe de 2000, a polícia se desintegrou como organização operante e os membros da polícia foram atraídos em diferentes direções – os policiais ou se revelaram tendenciosos, ou foram cooptados para a militância movida por questões étnicas, ou simplesmente ficaram incapazes de agir. O ambiente pesado fazia com que os membros da polícia não pudessem promover investigações em território controlado por um grupo étnico rival, ou simplesmente não agissem como deveriam por medo de represálias. A organização policial de Papua Nova Guiné, denominada Royal Papua New Guinea Constabulary (RPNGC), várias vezes ficou em evidência nos últimos cinco anos devido a incidentes e acusações de brutalidade, uso excessivo de força letal e acobertamentos de provas que levaram à impunidade de seus membros. De modo preocupante, grande parte da brutalidade policial em Papua Nova Guiné parece ter lugar no decorrer do trabalho policial de rotina, como consta de relatórios de observadores internacionais e de organizações de direitos humanos.
Iniciativas de reforma da polícia
Além de apresentar graves problemas de policiamento, os países da Commonwealth no Pacífico também dão lições sobre a reforma da polícia. Existem vários projetos de reforma da polícia em andamento hoje, alguns restritos a países, e outros de âmbito regional. Muitos dos programas de reforma recebem assistência de entidades internacionais, particularmente dos governos da Austrália e da Nova Zelândia, embora haja também iniciativas domésticas específicas. Seja como programas conduzidos por patrocinadores externos ou como iniciativas de governos nacionais, as reformas da polícia usualmente são incluídas como um dos aspectos de um programa de reforma mais amplo, de alcance setorial, e com freqüência associados à reforma do judiciário ou a organismos-chave de supervisão do governo como o Ombudsman ou o Ouvidor-Geral. A agenda para a reforma da polícia na região inclui, entre outras coisas, a substituição de leis já ultrapassadas sobre a ação policial por uma legislação que proporcione uma base saudável para um policiamento democrático moderno; a reestruturação organizacional para tornar a polícia menos militarista e hierarquizada; a remodelação do currículo de treinamento de modo que reflita novas exigências de competências e padrões de direitos humanos; e a oferta de tecnologia aos quadros policiais para que possam incrementar seu desempenho. Como sempre, essas iniciativas de reforma devem ser sustentadas pela garantia de uma responsabilização cada vez maior – tanto internamente nas organizações policiais, como por meios externos.
Aspectos práticos do policiamento democrático
Os programas de reforma em andamento estão contribuindo para trazer elementos de policiamento democrático para as organizações policiais do Pacífico. O policiamento democrático é tanto um processo – a maneira pela qual a polícia faz seu trabalho – como um resultado. Os valores democráticos da Commonwealth proporcionam uma saudável estrutura para isso.
Uma organização policial “democrática” deve:1
• ser responsabilizável perante a lei, em vez de constituir-se como lei. A polícia, como todos os órgãos e empregadores governamentais, deve agir dentro da lei do país e dentro das leis e padrões internacionais, incluindo as obrigações de direitos humanos. Membros da polícia que infringem a lei devem arcar com as conseqüências, tanto internamente através dos sistemas disciplinares das organizações policiais, como externamente, através do sistema criminal da justiça..
• ser responsabilizável perante as estruturas democráticas governamentais. A polícia é um órgão do governo, e deve prestar contas ao governo por sua adesão à política governamental e pelo uso dos recursos governamentais. No entanto, espera-se que a polícia permaneça politicamente neutra e que faça cumprir a lei sem parcialidades. Ela deve permanecer responsabilizável em primeiro lugar perante a lei do país, e não meramente perante a facção política que detém o poder.
• ser transparente em suas atividades. A responsabilização é facilitada por uma maior transparência. Num sistema democrático, a maior parte da atividade da polícia deve ficar aberta à fiscalização e ser regularmente reportada a organismos externos a ela. Essa transparência aplica-se à informação sobre o comportamento de membros individuais da polícia e também à atuação da organização policial como um todo.
• dar prioridade operacional à proteção da segurança e dos direitos de indivíduos e grupos privados. Os policiais devem ser responsabilizáveis perante as pessoas, e não apenas perante o governo, por suas decisões, ações e desempenho. Os policiais devem ser ser receptivos às necessidades de membros individuais da comunidade – especialmente das pessoas vulneráveis – ao invés de ser receptiva meramente a ordens emitidas pelo governo.
• proteger os direitos humanos, especialmente aqueles exigidos para o exercício de atividades políticas irrestritas e características da democracia. O policiamento democrático implica policiar de modo a apoiar e respeitar os direitos humanos e priorizar a proteção da vida e da dignidade do indivíduo. Também requer que a polícia faça um esforço especial para proteger as liberdades características de uma democracia – liberdade de expressão, liberdade de associação, reunião e movimentação, de não ser arbitrariamente preso, detido e exilado, e ainda a imparcialidade na administração da lei. Priorizar a proteção dos direitos humanos no trabalho policial exige o exercício habilidoso do arbítrio por parte do policial profissional.
• manter altos padrões de conduta profissional, e fornecer um serviço de alta qualidade. Policiais são profissionais, com imensos poderes, sobre os quais o público deposita muita confiança. Neste sentido, o comportamento do policial deve ser governado por um rígido código profissional de ética e conduta, em relação ao qual ele possa ser considerado responsável segundo a maneira como se conduz. Ao mesmo tempo, os policiais são parte de uma organização prestadora de serviço. Devem prestar seus serviços à comunidade com o nível de qualidade mais elevado possível, além de deverem ser responsabilizados pelos resultados que obtêm.
• ser representativa das comunidades que atende. As organizações policiais, que refletem as populações que servem, são capazes de atender melhor às necessidades dessas populações, e de conquistar a confiança de grupos marginais e vulneráveis, que são os que mais precisam de sua proteção. O recrutamento feito pela polícia deve objetivar a criação de uma instituição policial mais representativa e diversificada, especialmente nos locais em que as comunidades são heterogêneas.
Um elemento crucial para fortalecer o policiamento democrático é o princípio de que a polícia deve ser responsabilizável: não apenas por parte do governo, mas por parte de uma rede mais ampla de órgãos e organizações, que trabalhem na defesa dos interesses das pessoas dentro de um contexto de direitos humanos. Um sistema eficaz de responsabilização da polícia – alinhado com os sistemas de pesos e contrapesos que moldam os sistemas democráticos de governo – é o que se caracteriza por níveis múltiplos de responsabilização. Na maioria das vezes, a responsabilização voltada para organizações policiais vem de quatro fontes:
• controle governamental (ou ‘estatal’). Os três poderes do governo – legislativo, judiciário e executivo – estabelecem a arquitetura básica para a responsabilização da polícia numa democracia. Na verdade, nos países da Commonwealth, os líderes da polícia respondem diretamente a representantes públicos eleitos no poder executivo, por exemplo ministros responsáveis pela polícia. Os chefes da polícia costumam ser convocados à presença de deputados e senadores para prestar depoimentos. Nos lugares em que existe um judiciário forte e independente, é possível mover processos contra a polícia em tribunais, que podem resultar em nova jurisprudência, em guia de procedimentos sobre questões de responsabilização, ou em canais adicionais para efetuar reparações.
• controle externo independente. A natureza complexa do policiamento e os amplos poderes concedidos à polícia impõem a implantação de controles adicionais. Em qualquer democracia, a existência de pelo menos um organismo de supervisão civil independente é muito importante para estender a responsabilização da polícia àqueles círculos fora dela e do governo. Instituições como as Comissões de Direitos Humanos, Ombudsmen e organismos públicos de recebimento de reclamações podem desempenhar um papel valioso na inspeção da polícia e na limitação do abuso do poder por parte dela.
• controle interno. O controle interno na organização policial, na forma de sistemas disciplinares, de treinamento e de supervisão, e sistemas adequados de registro de dados sobre desempenho ou crime são necessários em qualquer organização policial. O desafio em muitas jurisdições da Commonwealth é que as políticas e procedimentos internos simplesmente não são implementados de modo adequado, ou, em alguns casos, nem chegam a ser implementados.
• controle social ou “responsabilização social”. Numa democracia, os policiais são publicamente considerados responsabilizáveis pela mídia, assim como por indivíduos e por uma variedade de grupos (como as vítimas de crimes, organizações de negócios, grupos cívicos locais ou associações de bairro). Desse modo, o papel de responsabilizar a polícia não é deixado meramente às instituições democráticas que representam o povo: as próprias pessoas comuns desempenham um papel ativo no sistema de responsabilização. Existe apenas um número reduzido de instituições que facilitam esse tipo de responsabilização na Commonwealth. Mais exatamente, espera-se que a polícia e as comunidades negociem arranjos adequados e diversificados.
Responsabilização da polícia na região
Os organismos policiais dos países da Commonwealth no Pacífico são forças centralizadas; todos eles são constitucionalmente estabelecidos e governados por leis específicas sobre a ação policial. Ainda, todos são dirigidos por um Comissário de Polícia que, por sua vez, reporta-se a um determinado Ministro responsável pela polícia. Um dado importante é que o Comissário de Polícia é responsável pelas questões cotidianas administrativas, operacionais e financeiras. Somente em Tonga isso não ocorre – a Seção 8 do Estatuo Policial de Tonga confere o “comando, superintendência e direção” da polícia ao Ministro da Polícia, “que pode delegar ao Superintendente da Polícia o exercício desta responsabilidade em seu nome”.2 Neste caso, o Ministro fica responsável perante o conselho de ministros. Na maior parte das vezes, os organismos policiais desta região ficam sob a esfera de ação dos ministros dos Assuntos Internos, da Segurança Interna, ou nos casos das Ilhas Salomão e de Tonga, de um Ministro da Polícia específico.
Estruturas legais da responsabilização
A necessidade de que a polícia seja responsabilizável é claramente reconhecida pela legislação internacional. Numerosas declarações e tratados das Nações Unidas têm definido normas de responsabilização e estas se refletem nos padrões regionais e domésticos da Commonwealth. Os países da Commonwealth no Pacífico são todos membros das Nações Unidas e, portanto, reconhecem o sistema de leis e padrões internacionais das Nações Unidas junto com as declarações e comunicados da própria. Embora o Pacífico não tenha padrões regionais diretamente associados à responsabilização da polícia, uma organização regional chamada Pacific Islands Forum, que busca incrementar a cooperação entre Estados-membros, quase todos também parte da Commonwealth, tem produzido declarações como fórum para fortalecer a governabilidade e a segurança regionais, com implicações para o policiamento.
Embora os instrumentos internacionais sejam uma referência significativa para o policiamento democrático, na pr&aacu