· Revista Conectas – Assuntos

0
Rate this post

Para surpresa de todos, e incluindo os prognósticos mais otimistas, o Tribunal Penal Internacional (de agora em diante citado como “TPI” ou “Tribunal”) é hoje uma realidade; e, menos de oito anos depois de adotado o Estatuto do Tribunal Penal Internacional1  (de agora em diante citado como “Estatuto de Roma” ou “Estatuto”), já tiveram início os primeiros inquéritos e o primeiro caso.2  Diante desses fatos, faz-se necessário abordar um dos temas mais inovadores deste nascente sistema de justiça penal internacional: os direitos das vítimas nos procedimentos do Tribunal. Nesta linha, este trabalho tem como principal objetivo oferecer ao leitor uma visão geral do papel das vítimas e a interpretação dada pelo Tribunal em suas primeiras decisões.

O reconhecimento dos direitos das vítimas representa um dos maiores avanços da justiça penal internacional.Esses direitos consistiram em uma novidade e em um grande desafio enfrentado pelo Tribunal já em suas primeiras atuações. No entanto, pouco se escreveu sobre o tema,3  ainda que a cada dia se reconheça mais sua importância no discurso dos próprios funcionários do TPI e por parte dos estudiosos do direito penal internacional.

Com a intenção de facilitar o entendimento do papel das vítimas no sistema de justiça do TPI, proponho em primeiro lugar detalhar quais são os direitos estabelecidos no Estatuto e as demais normas aplicáveis aos procedimentos do Tribunal, assim como a interpretação que destes fez o Tribunal em suas primeiras decisões, para, em segundo lugar, abordar a organização adotada pelo Tribunal para dar conta de sua importante incumbência junto às vítimas em relação aos mais graves crimes contra a humanidade.

A inclusão dos direitos das vítimas:

novidade e desafio para o Tribunal Penal Internacional

A inclusão dos direitos das vítimas no Estatuto é um tema inovador para a justiça penal internacional, porque ao contrário do que se poderia pensar quanto aos tribunais penais que precederam, o TPI, a saber, o Tribunal Militar de Nuremberg, o de Tóquio, os tribunais ad hoc para a antiga Iugoslávia e o de Ruanda, não encontramos antecedentes, nem em seus estatutos, nem em sua prática ou em sua jurisprudência, relativos à inclusão dos direitos das vítimas tal como se encontram refletidos no Estatuto de Roma. Nesses tribunais, as vítimas não foram consideradas como parte legítima e independente nos procedimentos, razão pela qual não lhes foi outorgado um espaço próprio e sua participação se limitou ao oferecimento de depoimentos na qualidade de testemunhas.

Desse modo, previamente à adoção do Estatuto de Roma, e mesmo na própria Conferência de Plenipotenciários das Nações Unidas para o Estabelecimento do Tribunal Penal Internacional, a discussão sobre a inclusão da participação das vítimas nos procedimentos fez parte dos acalorados debates entre as delegações durante as negociações do articulado do Estatuto.4  Isso se deveu ao fato de que o papel das vítimas em um processo penal não era completamente compreendido por todas as delegações dos Estados participantes; nesse sentido, não existia certeza sobre que acordo seria finalmente alcançado pelos Estados ao aprovarem o Estatuto de Roma.

Para alguns países, como França, Argentina, Colômbia ou Guatemala, o papel das vítimas nos processos perante o TPI era mais facilmente compreendido porque, em sua legislação nacional, encontra-se nos processos penais, em maior ou menor grau, a figura da parte civil ou do “querelante solidário”, em que a vítima conta com um papel independente daquele do Procurador. Por isso, esses países entendiam a demanda das organizações da sociedade civil,5  que insistiam em que se reconhecesse um papel autônomo para as vítimas nos processos do TPI.

No entanto, se para os países da América Latina os direitos das vítimas no processo penal continua sendo um tema pouco explorado, apesar de compartilharem o sistema jurídico civil ou romano-germânico, para os países com sistema jurídico anglo-saxão, ou de common law, esse elemento é totalmente estranho.

O Estatuto é resultado do equilíbrio entre os diferentes sistemas jurídicos existentes, estabelecendo um sistema misto em seus procedimentos, nos quais podemos encontrar tanto alguns aspectos derivados do sistema civil como outros, derivados do sistema anglo-saxão. Essa mescla trouxe consigo a inclusão de um inovador sistema de justiça que reconhece a importância das vítimas na luta contra a impunidade e lhes outorga um papel autônomo. Esse reconhecimento se encontra plasmado no próprio Preâmbulo do Estatuto, ao ter presente que, “[…] no decurso deste século, milhões de crianças, homens e mulheres têm sido vítimas de atrocidades inimagináveis que chocam profundamente a consciência da humanidade”. No entanto, o exercício desse papel e desses direitos ainda se encontra limitado pelos direitos da defesa e pelas garantias de um julgamento justo e imparcial, tal como detalhado nos itens a seguir.

Os direitos das vítimas se encontram dispersos nos diferentes corpos normativos que regulam os procedimentos perante o Tribunal, a saber: o Estatuto, no qual se estabelecem os principias direitos; as Regras de Procedimento e Prova;6  o Regulamento do Tribunal;7  e o Regulamento da Secretaria do Tribunal.8  Nesses instrumentos existem mais de 115 disposições que fazem referência às vítimas,9  uma cifra que nada mais faz do que refletir a complexidade do sistema, regulando a forma como os direitos previstos podem ser exercidos, e como o Tribunal, por meio de seus distintos órgãos, se organiza para cumprir a importante incumbência que lhe foi atribuída com relação às vítimas.10 

Os direitos das vítimas

Como mencionamos anteriormente, é no Estatuto de Roma que se estabelecem os direitos das vítimas; mas, antes de entrar na análise desses direitos, é importante esclarecer o conceito de vítima para o Tribunal e compreender, assim, quem pode ser considerado titular desses direitos. A regra 85 assim define as vítimas:

para os fins do Estatuto e das Regras de Procedimento e Prova:

• por “vítimas” entender-se-ão as pessoas naturais que tenham sofrido um dano como conseqüência do cometimento de algum crime da competência do Tribunal;

• por vítimas poder-se-ão entender também as organizações ou instituições que tenham sofrido danos diretos a algum de seus bens que esteja dedicado à religião, à instrução, às artes, às ciências ou à beneficência, e a seus monumentos históricos, hospitais e outros lugares e objetos que tenham fins humanitários.

Esta regra não avança muito na definição de quais características o dano sofrido deve apresentar ou se a pessoa deve ser afetada direta ou indiretamente.11  De sua redação podemos concluir que, em princípio, qualquer pessoa pode ser reconhecida como vítima perante o Tribunal, se considerar haver sofrido um dano em conseqüência do cometimento de um crime de genocídio, um crime contra a humanidade ou um crime de guerra, de acordo com a definição contida no Estatuto; se esse crime é colocado sob a jurisdição do Tribunal por competência ratione personae, loci e ratione temporis, e se demonstrar perante ele que o dano sofrido é produto das condutas citadas.

Os direitos das vítimas podem ser agrupados em três grandes categorias: (1) o direito à participação, (2) o direito à proteção e (3) o direito à solicitação de reparação. Desses direitos, que podemos chamar de “principais”, derivam, por sua vez, os direitos “acessórios”, como se explica nos itens a seguir. No entanto, como mencionamos anteriormente, esses direitos não são absolutos, já que, para se manter um julgamento justo e imparcial em que se respeitem os direitos e garantias judiciais do acusado, outorgou-se ao Tribunal a faculdade de decidir a melhor forma como os direitos das vítimas poderão ser exercidos, a saber, de uma maneira que não impliquem detrimento de um julgamento justo e imparcial. Em outras palavras, o exercício dos direitos se encontra ainda condicionado às decisões dos juízes, que em cada caso terão a função de velar, por um lado, pelo respeito a um julgamento justo e, por outro, pelo exercício dos direitos das vítimas.

Torna-se fundamental reconhecer que nesse equilíbrio necessário entre os direitos do acusado e os direitos das vítimas existe já uma obrigação do Tribunal que, a princípio, deverá permitir e viabilizar o exercício dos direitos das vítimas de maneira efetiva ou fundamentar as razões que motivam um exercício restringido desses direitos.12  

A seguir serão explicitadas as categorias dos direitos principais. Posteriormente, será enfocada a interpretação sobre os direitos das vítimas dada na primeira decisão da Câmara de Questões Preliminares I do Tribunal no caso da República Democrática do Congo.13  Este é considerado o primeiro precedente jurisprudencial sobre os direitos das vítimas no TPI.

Direito à participação

O direito à participação das vítimas nos procedimentos do Tribunal é o principal direito outorgado pelo Estatuto e sua base está no artigo 68 (3), que estabelece:

Se os interesses pessoais das vítimas forem afetados, o Tribunal permitir que expressem as suas opiniões e preocupações em fase processual que entenda apropriada e por forma a não prejudicar os direitos do acusado nem a ser incompatível com estes ou com a realização de um julgamento eqüitativo e imparcial. Os representantes legais das vítimas poderão apresentar as referidas opiniões e preocupações quando o Tribunal o considerar oportuno e em conformidade com o Regulamento Processual.

Do texto desta disposição desprendem-se diversos elementos que devem ser considerados para se compreender o alcance desse direito. Estes elementos serão analisados à luz das regras 89 a 93 e de diversas disposições do Regulamento do Tribunal e da Secretaria.

Em primeiro lugar, as vítimas têm o direito de apresentar e de ter consideradas suas opiniões e observações quando seus interesses pessoais se virem afetados por determinada atuação do Tribunal. Para exercer esse direito, as vítimas deverão apresentar uma solicitação por escrito ao Secretário do Tribunal, de acordo com a regra 89 (1), na qual deverão expor sua intenção de exercer o direito à participação e as razões pelas quais consideram que devem ser reconhecidas em sua qualidade de vítimas em uma determinada situação ou caso.

Com o objetivo de viabilizar o exercício desse direito pelas vítimas, a Secretaria do Tribunal elaborou formulários padrão de solicitações de participação.14  Esses formulários deverão ser distribuídos pela própria Secretaria naqueles lugares onde o Tribunal realiza atividades de investigação e, na medida do possível, estar acessíveis nos idiomas falados pelas vítimas;15  elas deverão preferentemente fazer uso desses formulários e assegurar-se de fornecer ao Tribunal toda a informação ali solicitada.16  A Secretaria deverá auxiliar as vítimas no preenchimento desses formulários e capacitar para esse fim as vítimas, as pessoas que trabalhem com as vítimas ou grupos de vítimas no local dos fatos.17 

As solicitações de participação também deverão, na medida do possível, ser apresentadas no início da etapa da qual se deseja participar, e em um dos idiomas de trabalho do Tribunal, ou seja, inglês ou francês. Essas solicitações serão enviadas pela Secretaria à Câmara correspondente, com um informe sobre todas as solicitações recebidas, com a intenção de facilitar a decisão dessa Câmara.18  Será essa Câmara que determinará se, de acordo com a regra 85, os solicitantes comprovaram ser vítimas.

Para facilitar a decisão da Câmara, o Secretário poderá pedir informação adicional àquela apresentada na solicitação de participação, de acordo com a norma 86 (4).19  O pedido de informação adicional também poderá ser realizado pela Câmara, com o objetivo de fundamentar sua decisão.

Uma vez que o Tribunal tenha à sua disposição essas solicitações, determinará quem possui o caráter de vítima (e, portanto, poderá participar nos procedimentos) e a modalidade dessa participação, de acordo com a regra 89.20 

Quando as vítimas poderão exercer esse direito?

O direito à participação pode ser exercido em quaisquer das etapas dos procedimentos perante o Tribunal, que compreendem: o inquérito, desenvolvido exclusivamente pela Procuradoria; o processo, que se inicia com a identificação do suposto responsável e a solicitação de uma ordem de detenção, ou com a apresentação do acusado perante o Tribunal para a audiência de confirmação das acusações, etapa que inclui a apelação; e, finalmente, a reparação, no caso desta etapa ser celebrada em separado, depois de emitida a sentença condenatória.

Em todas essas etapas existem disposições que fazem referência explícita aos direitos das vítimas. Desse modo, por exemplo, na etapa de inquérito, as vítimas podem enviar informações ao Procurador para provocar o início de um inquérito motu proprio, de acordo como o artigo 15 (3); poderão também apresentar observações perante a Câmara de Questões Preliminares quando o Procurador entregar um pedido de autorização para o início de um inquérito. Já na etapa do processo ou julgamento enquanto tal, no caso da competência do Tribunal ou da admissibilidade ser impugnada, de acordo com o artigo 19 (3),21  as vítimas poderão apresentar suas observações. Finalmente, de acordo com o artigo 82 (4), as vítimas poderão, na etapa de reparações, apelar da ordem de reparação.

Diante desse quadro, podemos adiantar que existirão diferentes grupos de vítimas nas diferentes fases do processo perante o Tribunal, uma vez que são analisadas situações em que presumivelmente foram cometidos crimes da competência do Tribunal e das quais se devem individualizar posteriormente os supostos responsáveis para, por fim, condenar os culpados dos fatos provados. Isso gera a possibilidade de que, num primeiro momento, na etapa de inquérito, exista um primeiro grupo de vítimas, as “vítimas da situação”. Em uma segunda etapa, o grupo seria reduzido àquelas que alegam ser as “vítimas dos fatos” imputados ao suposto responsável dos crimes submetidos a julgamento pelo Procurador. Finalmente, um terceiro grupo, as “vítimas do condenado”, seria aquele que demonstrou ter sofrido danos produzidos pelos fatos pelos quais o responsável foi condenado.

Esse foi o complexo cenário enfrentado pelo Tribunal em suas primeiras decisões. É esse cenário que o levará a se perguntar, em um dado momento, que tipo de justiça oferecerá às vítimas que fiquem fora do último grupo de vítimas. A questão tornar-se-á ainda mais complexa se for de conhecimento público que o Procurador só enfocará os julgamentos e os inquéritos daquelas pessoas que tenham o maior grau de responsabilidade nos crimes. Isso gerará um número escasso de julgamentos nos quais se poderá supor a existência de uma g